Homo Faber, o determinado
"Homo Faber" é um livro bastante discutido no seio da academia, nomeadamente na relação entre literatura e filosofia, pela forma como usa a narrativa para discutir assuntos complexos como a racionalidade, o determinismo e o acaso no modo como suportam ou contrapõem a ideia do “humano que faz”. O livro foi publicado em 1957 pelo suíço Max Frisch e, segundo o próprio, teve como ponto de partida a neutralidade da Suíça na Segunda Guerra Mundial. A narrativa criada por Frisch não é completamente nova, antes assenta numa emulação quase direta da seminal obra de Sofócles, “Édipo Rei” de 427 a.C. Contudo o cenário construído por Frisch é inescapável à época em que foi escrita, denotando proximidades na descrição social — conservadorismo, conformismo, e ambição tecnológica —, com obras como “Fahrenheit 451” (1953) de Ray Bradbury ou “Flowers for Algernon” (1966).
A escrita de "Homo Faber" segue o estilo de relatórios escritos por parte de um engenheiro que viaja pelo globo em trabalho e regula toda a sua vida por meio da medição das perdas e ganhos, racionalizando prós e contras, tanto na relação com sistemas e máquinas como com pessoas. A razão é o cerne da sua personagem, o sentimento deve ser excluído a qualquer preço, não permitndo espaço ao sonho ou romance. Com esta personagem como centro, Frisch vai criar um conjunto de acasos e coincidências que vão virar a vida de Walter Faber do avesso, por forma a obrigá-lo a questionar a sua filosofia de vida. Se Frisch pretendia atacar aqui a posição racionalizada da Suíça face à guerra, não deixa de querer atacar todo o modo racional que suporta a evolução científica e tecnológica, e é exatamente nesse sentido primordial que podemos começar por ligar “Homo Faber” a “Édipo Rei”.
Para autores como H. D. F. Kitto, especialista em Tragédia Grega, Sofócles procura, com Édipo, confrontar a visão racionalista emergente na Grécia Antiga, personificada pelos primeiros cientistas da História, Thales e Anaximandro (ver livro de Rovelli). Estes cientistas procuravam compreender o mundo a partir da natureza, a partir de factos racionalizáveis, fugindo assim às tradições explicativas mágico-religiosas. Sofócles cria uma ironia profunda ao transformar uma profecia incestuosa numa realidade completa, tal como predeterminada, mas colocando simultaneamente o humano em face do poder do acaso e da coincidência atirando assim por terra toda a força da racionalização.
"Homo Faber" partilha não apenas o cenário central de incesto com "Édipo Rei", mas também a do seu fundamento não-determinismo, sugerindo que a vida humana não pode ser totalmente controlada por escolhas racionais. Ambos os livros destacam os problemas da excessiva racionalização na operacionalização da vida dada a enorme imprevisibilidade a que esta está sujeita.
O livro de Frisch foi adaptado ao cinema em 1991 por Volker Schlöndorff, com Sam Shepard na pele de Walter Faber e Julie Delpy de Sabeth. O filme segue de forma próxima o livro, embora descole da Suiça, centra-se nos EUA, foca-se mais no romance e menos nas indagações interiores do personagem, nomeadamente a parte final do livro, o que sucede no fim de vida a Faber, é completamente descartado.
Na senda da discussão sobre o Homo Faber e o racionalismo, aconselho a leitura de dois livros do Benjamin Labatut, "When We Cease to Understand the World" (2020) e "Maniac" (2023).
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