A "normalidade" de Auschwitz
Apesar de “The Zone of Interest” (2023) de Jonathan Glazer ser baseado no livro (2014) homónimo de Martin Amis, o livro que melhor sustenta a realidade descrita por Glazer é “Comandante de Auschwitz: A Autobiografia de Rudolf Hoess” escrito em 1946, um ano antes de se cumprir a pena de morte ditada pelo Supremo Tribunal da Polónia. Primeiro, porque a adaptação de Glazer se destaca totalmente do livro de Amis, este usa nomes ficcionais à mistura com um enredo romântico! Segundo, porque Glazer coloca em cena a pessoa de Rudolf Hoess e a sua família, tal como a casa em que viveram. Comecei a ler a autobiografia atraído por um desconhecimento total da sua existência poucos dias antes de ver o filme e acabei de o ler poucos dias depois. A experiência de ambos forma um todo bastante desconfortável, com o livro a enquadrar a obscenidade e o filme a transgredir o espectador.
“Comandante de Auschwitz” é o tipo de autobiografia que nunca leria porque se encaixa no registo de criminosos em série e afins. Contudo, não fazia ideia da sua existência e a sua descoberta junto com o filme despertou uma curiosidade particular. Queria saber como funcionava a psicologia de alguém responsável por algo inominável, queria perceber que tipo de quadro mental tínhamos ali. Mas não queria uma leitura académica ou ficcionada desse quadro, já tivemos muitas, tanto em livro como em filme. Vi este livro como um registo documental, mas mais ainda, como um acesso direto ao interior da pessoa que efetivamente esteve lá, e era isso que queria conhecer. Quando o abri e comecei a ler, senti desde logo uma proximidade com um discurso demasiado articulado e direto, que me fez hesitar em continuar, mas as palavras de Primo Levi fizeram-me continuar:
"It's filled with evil, and this evil is narrated with a disturbing bureaucratic obtuseness; it has no literary quality, and reading it is agony. Furthermore, despite his efforts at defending himself, the author comes across as what he is: a coarse, stupid, arrogant, long-winded scoundrel, who sometimes blatantly lies. Yet this autobiography of the Kommandant of Auschwitz is one of the most instructive books ever published because it very accurately describes the course of a human life that was exemplary in its way. In a climate different from the one he happened to grow up in, Rudolph Hoss would quite likely have wound up as some sort of drab functionary, com- mitted to discipline and dedicated to order-at most a careerist with modest ambitions. Instead, he evolved, step by step, into one of the greatest criminals in history." (Levi, 1985)
O livro acaba por desiludir, porque Rudolf Hoess segue exatamente o mesmo que Jonathan Glazer decidiu fazer no seu filme, colocando todo o foco nas tarefas, no fazer diário, eliminando toda e qualquer contemplação ou reflexão interior. Isto gera uma experiência estranha, mais intensa no filme, mas bastante próxima entre ambos os documentos, porque vemos a realidade como algo perfeitamente normal, natural e quotidiana em ambos os registos. No livro, Hoess explica tudo no maior detalhe, dá conta de todos os processos realizados, quando e como. Coloca-se no lugar de quem operou o campo, assume a responsabilidade, mas apresenta um olhar à distância que serve a quem lê hoje. No filme, temos muito menos exposição sobre o que aconteceu, o interior do campo de concentração nunca é visto, é apenas ouvido, o que nos coloca novamente à distância do acontecido. Contudo, o filme, ao focar-se na casa onde vivia Hoesse e a família, faz uma espécie de magnificação das ações realizadas no âmbito familiar, acabando por inevitavelmente aprofundar a componente psicológico-emocional dos intervenientes.
Claro que a leitura que retiramos do filme é aquela que o realizador, mas acima de tudo, os atores imprimem nos personagens, e aqui, ao contrário do livro de Hoess, que quase ignora a família, devemos destacar a esposa, Hedwig Hoess, pela brilhante performance de Sandra Hüller, que para compreendermos melhor o seu trabalho, opto por citar aqui parte da entrevista para a Variety:
"When Hüller realized what she was being offered, she initially declined. “I had a really physical reaction—I felt sick, like I had to throw up because I was so scared about this topic,” she says. “I had been avoiding it for such a long time.”
“I consider it very dangerous to do a thing like this psychologically, because normally as an actor I try to connect with the character that I play — I develop empathy for them, I try to figure out why they are the way they are. I couldn’t use my technique anymore, because I didn’t want that woman to have any of my capacity to connect or love. I didn’t want to give her any of that.”
“There’s a vacuousness to Hedwig that, in Hüller’s iciness, comes across as deeply disturbing. “Sandra’s struggle is in her performance,” Glazer says. “It’s a portrait of someone nonthinking. [Hedwig] never stops to think. She’s always doing. Always moving. There’s no self-reflection.” Hüller’s commitment in that regard is remarkable, since the very act of making the movie unsettled her."
É exatamente esta questão de sempre, a empatização com o que não pode ser empatizado, como diria Primo Levi: “o que aconteceu não pode ser compreendido, na verdade, não deve ser compreendido, porque compreender é quase justificar”. Huller não procura compreender, não procurar ser, procura apenas apresentar a personificação de uma mulher possível, oferecendo-lhe apenas o corpo, e esse, claramente perturbado, com traços menos positivos como o andar grosseiro, ou o penteado que não dividie as áreas simetricamente, afastando qualquer condição de beleza ou embelezamento da sua personagem.
Se o livro nos mostra todos os passos, que Hoess decidiu descrever, como e quando os fez, na naturalidade do fazer, o filme vai muito além, porque mostra tudo isso situado no interior de uma família perfeitamente normal, plausível, e igual a todos nós. Quando comecei a ver o filme, ainda não sabia se a casa tinha mesmo existido, ou se a família de Hoess ali tinha estado. Duvidei porque não conseguia esquecer as palavras que Hoess tinha escrito:
“During bad weather or when a strong wind was blowing, the stench of burning flesh was carried for many miles and caused the entire area to talk about the burning of Jews, despite official counter-propaganda.”
"There was no limit to the number of bodies that could be burned -- as long as the cremations could be carried out both day and night. -- The highest total figure of people gassed and cremated in twenty-four hours was slightly more than nine thousand."
Por isso, comecei a sentir toda aquela calma pastoral como encenação onírica o que me levou a equacionar se aquilo que Glazer estava a fazer não seria inventar todo aquele cenário para metaforizar aquilo que tinha acontecido com toda a sociedade alemã. A casa e aquela família, eram a metáfora direta da Alemanha que dormiu descansadamente enquanto no país ao lado, a Polónia, eram exterminados milhões de irmãos. Percebi depois que a casa tinha mesmo existido, fui mesmo ao Google Street ver que ainda existe, e a família tinha estado mesmo ali, os filhos todos estiveram ali, durante quase cinco anos! De 1940 a 1945!
Contudo, como o cinema não tem cheiro, apenas o som pode dar conta do que se passava ali, a representação visual ganha toda uma aparente normalidade. E é aqui que me parece que Glazer consegue a sua mais forte instigação com este filme, ao mostrar uma família — pai e mãe com os amados filhos — iguais a todos nós, fazendo-nos sentir que podíamos ser nós! É um sentimento de Horror. Poderíamos nós ter estado ali, ter vivido ali, ter aceitado tudo aquilo como perfeitamente normal? Porque depois de ler e ver estas obras, restam poucas dúvidas sobre o modo como a naturalidade conseguiu ali, e na mente de todas aquelas pessoas, assimilar a maior enormidade jamais cometida pela nossa espécie.
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