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A mostrar mensagens de julho, 2025

Late Shift (2025) – A humanidade que resiste no silêncio

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Há filmes que nos atravessam sem pedir licença, e Late Shift , da realizadora suíça Petra Biondina Volpe, é um desses raros gestos de contenção absoluta que, precisamente por isso, nos trespassam. Vi-o sem saber ao certo o que esperar, e saí em silêncio, o corpo ainda a tremer, como se tivesse vivido um turno inteiro naquele hospital exausto. Tudo se passa num só cenário: um hospital público, corredores despidos de música, quartos de tensão, máquinas a apitar, pessoas a falhar e a resistir. O filme não precisa de mais. A câmara acompanha Floria (interpretada por uma Leonie Benesch absolutamente desarmante) durante o seu turno da noite. Nada de novo, dir-se-ia. Mas esse é precisamente o ponto: o que aqui se filma é o excesso do que já está a acontecer. Não há espaço para ornamentação, já basta o real. Leonie Benesch, que muitos conhecerão do soberbo The Teachers' Lounge , volta aqui a provar que há atrizes que não representam: habitam . Floria não é um papel, é uma presença. O mod...

Contos em Três Movimentos

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Não costumo chorar. Mas ontem, enquanto via a terceira história de " Wheel of Fortune and Fantasy" , de Ryūsuke Hamaguchi, senti algo a abrir-se. Não chorei, mas estive perto. E percebi: o que me impede não é a ausência de emoção, é o lugar onde ela se instala. A literatura, a que leio, a que admiro, raramente me faz chorar. Talvez porque me puxa para o pensamento, para o desdobramento do gesto, para a arquitetura das intenções. No cinema, porém, quando tudo se alinha, a voz, o olhar, o tempo suspenso entre duas personagens que fingem e, no fingimento, se reconhecem, acontece outra coisa. A emoção pede presença. O filme de Ryūsuke Hamaguchi não tem música que empurra, nem efeitos que sacodem. Tem apenas três histórias. Três encontros. Três variações sobre o que nos prende e nos escapa. E talvez seja isso que o torna tão devastador: não há heroísmo, nem redenção, apenas o espanto íntimo de nos vermos ali, no centro de uma palavra mal dita, de um silêncio demasiado longo, de um...

A Lucidez que Nos Quebra

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Não há forma de suavizar o que se segue. Yiyun Li é professora em Princeton e perdeu os dois filhos por suicídio (2018, 2024). E também não há como suavizar este livro. Things in Nature Merely Grow  (2025) é, antes de mais, um livro sobre a perda. Não a perda sentimental, aqui não há espaço para redenção. É a perda como dissolução da narrativa, como gesto radical de permanência no abismo. Yiyun Li não escreve para consolar, nem para explicar. Escreve para permanecer lúcida onde a maioria de nós se desfaria. Li apresenta um livro de análise profunda sobre o que quer dizer estar vivo, sobre o que quer dizer o suicídio, sobre a aceitação da vida tal como ela nos é entregue — sem adornos, sem promessas, sem sentido imposto. Aceitei esse pacto. Entrei no livro sabendo ao que ia, ou julgando saber. Disse a mim mesmo que acompanharia aquela lucidez até ao fim, mesmo sabendo que não seria confortável. Mas à medida que o livro avançava, sobretudo na segunda parte, quando Yiyun Li se detém ...

O Outro que Desejamos Ser

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Nunca desejámos tanto deixar de ser quem somos. Nunca nos olhámos tanto ao espelho com a sensação de que nos faltava algo, de ter feito outras escolhas. Não sendo propriamente o desejo de felicidade que nos move, mas apenas o simples impulso de não continuar como estamos . A frase que abre o romance (ver abaixo) de David Foenkinos sintetiza algo mais vasto do que o drama privado de um casal: exprime o mal-estar de uma era que deixou de confiar na estabilidade dos vínculos, sejam eles afetivos, profissionais ou identitários. Já não vivemos em função de ideais duradouros, mas de pequenas tentativas de reconfiguração — como se a vida fosse um protótipo contínuo que vamos abandonando a cada falência emocional. “ Nunca antes uma época foi tão marcada pelo desejo de mudar de vida. ” Esse desejo de mudar — de casa, de cidade, de profissão, de corpo, de parceiro, de narrativa — não é sintoma de fragilidade. É um sinal desta época. Um modo de estar onde a separação é menos um evento e mais uma ...

O corpo que Homero não escreveu

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Hoje escrevi sobre Aquiles. Ontem, sobre Penélope, no Letterboxd . E percebi que não fazia sentido deixá-la fora deste espaço. Se há algo que Achilles  (2025) , dos Divine Comedy, e Return  (2024), de Uberto Pasolini, me revelaram nestes dois dias, foi isto: quanto mais o tempo passa, mais me apego à Ilíada e à Odisseia . Não pela fidelidade ao mito, mas porque neles encontro as origens do que ainda tentamos ser, e o contorno daquilo que só muito recentemente começámos a escrever. Return tenta o impossível: dar densidade psicológica e emocional a personagens que nunca foram concebidas para a ter. Juliette Binoche, como Penélope, traz à pele o peso do tempo e do silêncio. Ralph Fiennes, como Ulisses, regressa não como herói, mas como homem esvaziado pela guerra. O filme quer redimir o reencontro com uma complexidade humana que o mito nunca previu — e ao tentar, expõe aquilo que está ausente no coração da epopeia. A Odisseia é uma maravilha de estrutura, ritmo e tensão narr...

Achilles, ou a elegância da morte anunciada

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Nunca escrevi sobre canções neste espaço. Sempre associei o formato à fruição íntima e passageira, algo que se sente mas raramente se detém para ser desmontado. Mas de vez em quando surge uma exceção, uma canção que se impõe como texto, como narrativa plena, onde o tempo se dobra e os versos nos falam como personagens. Achilles (2025) , dos Divine Comedy , é uma dessas raras canções. Escrita e cantada por Neil Hannon, Achilles começa como uma elegia antiga. Um guerreiro contempla a morte de um amigo e promete vingança. Estamos em plena Ilíada , entre barcos queimados e deuses distraídos. Aquiles, Pátroclo, a cólera transformada em destino. A canção invoca esse universo mítico com sobriedade, sem grandiloquência, apenas sugerindo o peso trágico com versos contidos: “You slew my sweetest friend / His death will be avenged” . A música não se exalta — a orquestração embala. Como se dissesse: conhecemos este lamento há milhares de anos. O que surpreende é o salto seguinte. A segunda estro...

Tolstoy e o Desejo

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Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como " A Sonata a Kreutzer " (1889), de Lev Tolstói. "The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que conti...

A Cassandra da Casa Fechada

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Não saí bem deste filme. Fiquei chateado. Transtornado. Quase irritado. Não porque falhe, pelo contrário, talvez tenha sido demasiado eficaz. O que me perturbou foi a ausência de alento, de rutura, de qualquer abertura. O que me doeu foi ver Leila, que tinha tudo — energia, visão, lucidez — terminar soterrada num mundo que não a merecia. Fiquei magoado porque o filme não lhe deu o espaço de florir, de transformar, de desbravar o seu caminho. Sou um amante das histórias que mostram como se sai, como se cresce, como se transforma. E aqui, tudo ficou igual. Tudo permanece fechado. " Leila's Brothers " (2022), Saeed Roustayi Leila podia ter sido como Tara Westover , como tantas mulheres que desafiam a gravidade das suas origens e rompem com os códigos herdados. Mas não. Aqui, o que a impede não é um sistema político, nem uma ideologia fechada, é uma teia de afetos mal resolvidos, um emaranhado de culpas e dívidas emocionais, onde a incompetência masculina, não religiosa, não ...