Contos em Três Movimentos
Não costumo chorar. Mas ontem, enquanto via a terceira história de "Wheel of Fortune and Fantasy", de Ryūsuke Hamaguchi, senti algo a abrir-se. Não chorei, mas estive perto. E percebi: o que me impede não é a ausência de emoção, é o lugar onde ela se instala. A literatura, a que leio, a que admiro, raramente me faz chorar. Talvez porque me puxa para o pensamento, para o desdobramento do gesto, para a arquitetura das intenções. No cinema, porém, quando tudo se alinha, a voz, o olhar, o tempo suspenso entre duas personagens que fingem e, no fingimento, se reconhecem, acontece outra coisa. A emoção pede presença.
O filme de Ryūsuke Hamaguchi não tem música que empurra, nem efeitos que sacodem. Tem apenas três histórias. Três encontros. Três variações sobre o que nos prende e nos escapa. E talvez seja isso que o torna tão devastador: não há heroísmo, nem redenção, apenas o espanto íntimo de nos vermos ali, no centro de uma palavra mal dita, de um silêncio demasiado longo, de um desejo que chega tarde demais.
Forma Tripartida: o cinema que se aproxima do livro de contos
"Wheel of Fortune and Fantasy" é cinema, sim. Mas aproxima-se, em espírito, de um livro de contos. Não daqueles que se unem por enredo ou universo ficcional, mas por ressonância interior, como os livros de Alice Munro, onde cada história parece escrever em segredo uma nota de rodapé à anterior. Ou como os de Kawabata, onde tudo se move em silêncio, e o gesto mais pequeno reverbera por páginas inteiras.
O filme divide-se em três partes, cada uma com título próprio, como num pequeno índice literário:



São histórias autossuficientes, com personagens distintas e tons variados, mas que se ligam por um mesmo fio invisível: o modo como o acaso nos empurra para zonas de verdade que não procurámos. Como um reencontro inesperado nos obriga a dizer aquilo que nunca confessámos. Como uma leitura de sedução se transforma, sem aviso, numa cena de desnudamento emocional. Como um engano pode criar, em vez de destruir.
Há aqui uma estrutura quase musical, uma suíte de câmara afetiva. O primeiro movimento é cortante, tenso, com o frio da traição. O segundo, mais filosófico, mergulha na moralidade e na escuta. O terceiro, suspenso no tempo, é um último gesto de ternura partilhada entre desconhecidas.
E ao contrário do cinema contemporâneo que acelera, que teme o silêncio, Hamaguchi deixa as palavras viverem. As suas personagens falam muito, como se estivessem num palco, ou num romance dialogado. E nesse excesso de linguagem, paradoxalmente, encontramos o real: não o que é dito, mas o que se cala antes e depois da frase.
Mais do que um filme sobre o amor ou o acaso, "Wheel of Fortune and Fantasy" é um filme sobre a linguagem quando ela falha, quando ela se transforma em gesto relacional. É por isso que o sentimos tão próximo da literatura.
- However, it's what the words wanted, rather than what I wanted.
- The words?
- That's my other reason. Their arrangement is determined by their relationship. Words ask for words, which is different from what I ask for. If the resulting sequence of words is correct by my standards, I leave them as is.
O Poder Feminino
Há um eixo invisível que atravessa as três histórias: o poder das mulheres não como imposição, mas como força de escuta, presença e transformação. Não se trata de domínio clássico — mas de uma inteligência afetiva que guia cada narrativa até ao seu ponto de viragem.
Na primeira história, a mulher que trai fá-lo por experimentação, sem culpa, com uma clareza que desarma. Na segunda, a mulher transforma uma armadilha numa cena de escuta redentora. Na terceira, são duas mulheres que, por engano, constroem um laço mais verdadeiro do que muitos reais.
Em todas, são elas que decidem quando o jogo começa e quando acaba. São elas que permitem, ou não, que o outro se revele. Mas fazem-no sem arrogância. Há uma gentileza nos seus gestos, uma autoridade tranquila. E é isso que torna o impacto emocional tão poderoso. Muito do efeito do filme reside, claro, nas atrizes. Hamaguchi dirige-as com contenção, mas elas carregam as cenas com uma presença rarefeita, cheia de pausas, escuta, respiração. Não são "fortes" no sentido óbvio. São presentes. E isso basta.
- And you? Are you good?
- I can't answer straight away like you.
- You're not well?
- My body's fine.
- Then...
- It's not a big problem. But sometimes I wonder why I'm here. I could've become anything, but time flew past before I knew. I'm fairly satisfied. This is what I chose. And I know it's wrong to want more. But... I'm not passionate about anything anymore. I don't know what to do. Time is... slowly killing me. I'm sorry to say this all of a sudden.
A Literatura Encarnada de Hamaguchi
Se há filmes que pedem comparações com literatura, "Wheel of Fortune and Fantasy" é um deles. Não pela adaptação de textos, mas pela estrutura e intenção: são histórias que poderiam estar num livro — mas que só se realizam plenamente quando ditas, olhadas, respiradas.
Hamaguchi filma como quem escreve: com atenção à frase, à pausa, ao tom. Os seus diálogos não servem para avançar a ação — _são_ a ação. E o que se transforma não é o mundo exterior, mas o espaço entre duas pessoas. Tudo acontece ali: no timing da fala, no olhar que hesita, no gesto que não se completa.
Mas há algo que o cinema aqui acrescenta à literatura: o corpo.
A palavra dita, o silêncio partilhado, o movimento do rosto enquanto se escuta. A escrita pode sugerir, mas não encarnar. O cinema de Hamaguchi não ilustra o texto, é o texto, dito por corpos reais, no tempo real.
Talvez por isso este filme emocione mais do que um conto. Não porque diga mais, mas porque nos obriga a escutar com o corpo. E nesse gesto, algo se abre.
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