Late Shift (2025) – A humanidade que resiste no silêncio

Há filmes que nos atravessam sem pedir licença, e Late Shift, da realizadora suíça Petra Biondina Volpe, é um desses raros gestos de contenção absoluta que, precisamente por isso, nos trespassam. Vi-o sem saber ao certo o que esperar, e saí em silêncio, o corpo ainda a tremer, como se tivesse vivido um turno inteiro naquele hospital exausto.



Tudo se passa num só cenário: um hospital público, corredores despidos de música, quartos de tensão, máquinas a apitar, pessoas a falhar e a resistir. O filme não precisa de mais. A câmara acompanha Floria (interpretada por uma Leonie Benesch absolutamente desarmante) durante o seu turno da noite. Nada de novo, dir-se-ia. Mas esse é precisamente o ponto: o que aqui se filma é o excesso do que já está a acontecer. Não há espaço para ornamentação, já basta o real.

Leonie Benesch, que muitos conhecerão do soberbo The Teachers' Lounge, volta aqui a provar que há atrizes que não representam: habitam. Floria não é um papel, é uma presença. O modo como se move, observa, regula a exaustão e o cuidado, tudo nela encarna uma profissão e uma condição. Dá vontade de lhe agradecer no final, com um abraço: por dar rosto, corpo e alma a todas as enfermeiras que mantêm o mundo a funcionar enquanto os outros dormem.

Late Shift é também uma obra de estrutura narrativa milimétrica. Pequenos eventos surgem, crescem e colapsam. Uns começam bem e terminam mal, outros fazem o percurso inverso. E a tensão, esse nó que não se desfaz, mantém-nos em suspensão até ao último minuto. Não há catarse fácil. Quando a música finalmente irrompe, é como um lamento guardado. Anohni canta:

Hope there's someone who'll take care of me / When I die, will I go?

E é como se a alma se abrisse, sem pedir permissão. Não há redenção plena, mas há humanidade. Há resistência. Há cuidado.

Li duas críticas no The Guardian. Uma delas vê o filme como uma preciosidade política e emocional. A outra, com um tom mais cínico, fala em "resoluções arrumadinhas" e "elementos de drama televisivo". Discordo profundamente. A contenção do filme é precisamente a sua força. A sua negação do artifício, a recusa do choque gratuito, é o que o torna urgente. O tempo narrativo de Late Shift é o da exaustão real, o da espera sem garantias, o da compaixão que não precisa de discurso.

Late Shift deve ser visto. Não porque revoluciona a linguagem cinematográfica, mas porque a depura até ao seu âmago ético. Porque nos lembra, sem moralismos, que o cuidado ainda é possível, mesmo quando o sistema já não o permite. Porque há atrizes que nos fazem viver com elas, e porque o cinema, às vezes, ainda é capaz de nos acordar da anestesia.

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