“A Voz das Mulheres”, livro e filme

“A Voz das Mulheres” (2018) foi escrito por Miriam Toews (1964), escritora canadiana, descendente das comunidades ucranianas emigradas para Manitoba, Canada. Toews foi menonita até aos 18 anos, o que a torna particularmente habilitada para falar de um dos mais hediondos crimes ocorridos numa comunidade religiosa em pleno século XXI. Entre 2005 e 2009, 151 mulheres, entre os 3 e os 65 anos, da colónia de menonitas de Manitoba na Bolívia, foram violadas, várias mais do que uma vez, por um grupo de 8 a 9 homens, que usaram um produto anestésico para vacas para deixar as mulheres inconscientes. Em 2022, Sarah Polley (1979), realizadora canadiana, escreveu e realizou o filme homónimo pelo qual recebeu o Óscar de Melhor Argumento Adaptado.

Se o livro é bom, o filme parece ser melhor, contudo, após breve reflexão percebi que ambos isolados são bons, elevando-se apenas a excecionais quando experienciados em conjunto. Ou seja, o livro e o filme funcionam como duas peças estéticas complementares. O fundo narrativo é exterior a ambas, uma vez que o crime ocorrido não é retratado pelas autoras, apesar de estar implicitamente sempre presente. O livro e o filme focam-se no pós-descoberta dos crimes, e no modo como as mulheres devem responder ao que lhes é exigido, uma vez que a comunidade religiosa, profundamente patriarcal, lhes ordena que perdoem os criminosos ou abandonem a comunidade. A história do livro e filme é praticamente a mesma, com ligeiras variações no filme, mas a forma escrita ganha tremendamente com a forma audiovisual, e por sua vez a forma audiovisual ganha tremendamente com o contexto providenciado pelo livro, complementando-se.

No livro, ficamos a conhecer o interior de cada uma das 8 mulheres, ficamos a saber de onde vêm, como se relacionam, como funcionam as regras do lugar, porque sentem o que sentem, assim como sobre August, o professor que escreve a ata da reunião, e que é o narrador no livro. Contudo, é no filme que ganhamos acesso direto à expressão corporal do sentir daquelas mulheres. Quando experienciamos o filme, munidos do conhecimento do interior de cada uma daquelas personagens, todos os comportamentos, trejeitos e palavras ganham camadas de significados maiores do que a soma das duas obras. 

Para este efeito contribui uma escrita muito simples e direta, sem simbolismos nem metáforas, por parte de Toews, que acaba submetendo-se na perfeição a um filme nas antípodas, fazendo uso de uma expressão audiovisual imensamente detalhada, nomeadamente na cinematografia, direção de atores e música. A cinematografia começa por extasiar o nosso olhar com um ratio 2.76, capaz de nos oferecer paisagens a perder de vista, mesmo quando encerrados dentro de um pequeno celeiro, enfatizadas por uma dessaturação e escurecimento das cores que contribuem para a criação de um mundo além do real, o tal mundo ficcional, de onde Toews diz ter emanado esta história. A planar sobre a imagem, Polley colocou todo um score composto por Hildur Guðnadóttir, autora de algumas das mais emblemáticas bandas sonoroas dos últimos anos — Prisoners, Sicario, Revenant, Arrival, Joker, Tar ou a minisérie Chernobyl. Assim, quando enfrentamos a performance das mulheres, pelo enquadramento de Polley, com os acordes Guðnadóttir, é muito difícil não voltar ao livro, não usar tudo aquilo que lemos para ir além dos diálogos parcos do filme e deixar-nos imergir totalmente naquele mundo.



"A Voz das Mulheres é uma reação a estes acontecimentos da vida real através da ficção, e é também um ato de imaginação feminina." -- Miriam Toews

O livro foi criticado por oferecer pouco mais do que mulheres falando sobre o que fazer repetidamente, com o que em parte concordei quando terminei o livro. Foi ao ver o filme que todo o livro se transformou, ganhando uma nova dimensão, por se tornar fundamental na experienciação plena do filme. E assim, dei por mim a pensar novamente no quão pouco justo ou relevante se torna a leitura de peças de teatro, da Antiga Grécia ou Shakespeare, sem que as mesmas sejam verdadeiramente experienciadas ao vivo. O texto de Toews, tal como o dessas peças, só atinge o seu auge estético quando postos em cena, quando as meras palavras escritas são transpostas pela encenação de coreografias de vozes e corpos.

Numa nota final, o livro e filme são mais do que uma mera experiência estética, o embate com a espécie humana tal como nos é apresentada, sabendo-se ser baseada em eventos reais, é muito doloroso. Pensar que no século XXI é possível acontecerem violações em massa, dentro de comunidades que se afirmam como filhos inocentes de deus, é capaz de atirar ao chão toda e qualquer esperança no ser humano. Somos animais dotados de uma cognição e consciência elevadas, capazes de nos levar a fazer o melhor, mas também o pior, ficando demonstrado que sem leis que regulem, controlem e disciplinem o que somos não somos nada.

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