Uma carta postal enviada do passado

“La Carte Postale” (2021) é um livro particularmente emocionante pelo modo como romanceia parte da História que serve de cenário a uma saga familiar que atravessa de Moscovo a Paris, passando pela Letónia, Polónia, Israel, terminando na interseção entre Alemanha e França, em plena Segunda Grande Guerra. O livro baseia-se na família da autora, Anne Berest, e inicia-se no momento em que a família recebe um postal na caixa de correio (ver a capa do livro), já em 2003, no qual vêm inscritos os nomes dos bisavós e tios de Anne — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, todos desaparecidos em 1942, num campo de concentração na Polónia. O livro leva-nos atrás da investigação de Anne para descobrir quem terá enviado o dito postal e com que intenções. Pelo meio vamos descobrir a história daquelas 4 pessoas, do muito que atravessaram antes e durante a guerra, mas em essência vamos descobrir uma grande parte da História por detrás do colaboracionismo francês no tempo da ocupação francesa pelos Nazi.

O trabalho apresenta um detalhe tremendo a ponto de nos transportar para a França desse tempo, ilustrando o modo como as pessoas viviam, viajavam, mas acima de tudo muito daquilo que eram as crenças daquele tempo, muito antes da Europa ter descoberto aquilo que efetivamente se passava nos campos alemães e polacos. A história dá uma volta de 360º acabando por terminar de forma sumptuosa, com um toque de enorme ternura.

Claro que tudo isto é conseguido porque Berest usa dos factos todos para construir uma narrativa que nos prende continuamente, clamando pela nossa atenção, fazendo-nos virar páginas atrás de página. A densidade de factos misturados com as pequenas emoções, motivações e desejos dos personagens vai tornando toda a leitura numa viagem extremamente compensadora.

Inicialmente pensei que não me interessaria tanto, porque já sinto cansaço com o tema da segunda guerra e dos nazis, mas Berest faz um trabalho tão conseguido, nomeadamente adicionando camadas de detalhes desconhecidos, e nos obriga a questionar o antisemitismo, não apenas desse tempo, mas de sempre e até aos dias de hoje, assim como acaba explicando em maior detalhe o porquê de tantos e tantos terem ficado para trás, assim como sobre as técnicas de persuasão usadas pelos nazis para avançar com recolha dos judeus sem levantar grandes problemas, nomeadamente em França. Uma outra parte muito interessante é sobre o pós-guerra em França, o modo como se tentou lidar com os colaboracionistas, e que por várias vezes me fez pensar sobre o modo como os portugueses lidaram com o pós-25 de abril, nomeadamente com todos aqueles que fizeram parte da PIDE. Os detalhes que suportam o romance são impressionantes, demonstrando um esforço genuíno de pesquisa efetuado pela autora.

Tenho de confessar que a meio do livro tive uma experiência particularmente impactante. Resolvi pesquisar a imagem da senhora que está na capa da edição inglesa, e descobri não apenas que era a foto de Noémie, mas que vinha de um site onde figura informação sobre os vários comboios enviados de Paris para os campos de concentração nos anos 1940. Encontrei as fotografias de toda família — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, excetuando Myriam, a única sobrevivente, mas o impacto veio depois, quando comecei a ver os vários vagões, e as fotografias de cada uma daquelas pessoas, que tinham sido fotografadas antes, nas suas vidas, com caras sorridentes, plenas de vida, de sonhos futuros, e eu me vejo de repente confrontado com a ideia, aterradora, de que todas aquelas caras, todos aqueles sonhos, foram efetivamente destruídos em câmaras de gás, incinerados, enterrados em valas comuns, fuzilados, destruídos... Tive de parar, de me recolher, e fazer uma espécie de minuto de silêncio... 

Já li muita coisa sobre o que aconteceu, já vi muitos filmes, incluído o “Shoah” (1985) de 10 horas, mas ainda assim, o impacto destas fotografias, provavelmente por serem de pessoas reais, ainda na flor da sua vida, com tanto para oferecer à humanidade, fizeram-me parar, sentir de uma forma como raramente tinha sentido.

Quero agradecer a Anne Berest pela pérola escrita criada, e dar os parabéns a todos aqueles que continuam a trabalhar na preservação das memórias daqueles que foram feitos desaparecer. É muito importante continuar a falar de tudo isto, não de um modo abstracto, distante, mas de um modo concreto, com nomes, caras, pessoas concretas, que eram iguais a qualquer um de nós.

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