Verdade ou Ficção

O livro "D'après une histoire vraie" (2015) de Delphine Vigan trabalha em dois registos, um de agrado popular, outro dedicado aos críticos e estudiosos da literatura. No primeiro, temos a história colada a "Misery" de Stephen King, em que uma leitora aborda a escritora, introduzindo-se na sua intimidade, para conseguir levar a escritora a escrever o que ela pretende. No segundo, temos a angústia literária da relação entre a ficção e realidade de onde emana a questão da pureza da verdade. Os diálogos entre a leitora e a escritora são muitíssimo bem escritos, capazes de desvelar a psicologia de ambas nos mais pequenos detalhes. O suspense e o mistério entretém-nos, enquanto a filosofia da literatura nos vai sendo servida, em pequenas doses, ao longo de todo o livro.

Se se sente uma ligeira repetição na discussão entre a ficção e a realidade/verdade, essa serve essencialmente para nos fazer perceber que o assunto tem não só multiplas camadas mas múltiplas ramificações. O problema não está apenas no lado do escritor, a sociedade pede a televisão realidade, pede os filmes e os crimes basesados em histórias reais, a sociedade parece cansada do mero artifício narrativo. Mas será esse parecer efetivo? Estamos mesmo cansados da ficção? Porquê esta necessidade do verdadeiro, do real? Uma espécie de sideração que o próprio marketing tem procurado oferecer colando selos de "autenticidade" nos produtos — "since 1895" — como se o tempo pudesse dar maiores garantias de produto "verdadeiro".

Confesso que senti todo o livro com maior impacto porque esta questão que me vinha assombrando há alguns anos surgiu, durante esta leitura, no meio de uma conversa no Goodreads com o Glenn, a propósito do livro "As Benevolentes" (2006) de Jonathan Littell em que eu dizia: 

"Já pensei em ler este livro várias vezes, mas sempre que me preparo para o fazer, releio algumas coisas sobre o autor e pergunto-me: faz sentido que alguém sem qualquer ligação ao que aconteceu, bem como uma personagem completamente ficcionada, sejam apresentados num relato tão forte como o descrito? Até que ponto é verdadeiro? Isto é relevante porque estamos a falar de um acontecimento histórico, e se o que tem para oferecer não é história, é apenas horror, estou muito cético quanto ao que se pode retirar da sua leitura."

Daqui passei em revista outros livros com os quais senti problemas próximos, lembrando particularmente aqueles que foram publicados como livros de memórias tendo depois sido descobertos como fraudulentos como "A Million Little Pieces" de James Frey, que comprei mas não consegui ler, ou "Painted Bird" de Jerzy Kosinski que comecei a ler mas não consegui continuar. Por outro lado, penso "Papillon" de Henri Charrière que passou pelo mesmo, mas que eu desconhecia, e por isso sempre vi o filme como ficção, adorando-o enquanto tal, não lhe exigindo nada mais.

Haverá diferenças. Um livro apresentado como autobiografia, como memórias, que se revela não ser real, entra diretamente no território da fraude, e essa fraude pode por vezes ter implicações muito complicadas, nomeadamente nas vidas de todos aqueles ali visados. 

Mas um livro apresentado como ficção, não deve nada a ninguém. Então porque deve a ficção ser baseada no real? E mesmo aqui temos nuances. Glenn dava o exemplo de "Guerra e Paz", o livro que Tolstoy escreveu sem nunca ter estado na guerra, mas baseado em factos relatados por outros. E no entanto, podemos ter ficção sem qualquer contacto com eventos reais, criados, emanados, da experiência de vida do autor a partir do que constrói a teia munida das suas preferências e gostos.

E no entanto, porque lia ao mesmo tempo "Misericórdia" (2022) de Lídia Jorge, perguntava-me a minha mulher, "mas o que é que ela sabe sobre a experiência de viver num lar?", enquanto eu replicava que quando se vai para um lar já não se detem controlo de todas as competências cognitivas necessárias à escrita de memórias. Li, sempre pensando no acesso privilegiado que Lídia Jorge teve via sua mãe, mas questionando o que teria sido inventado pela própria Lídia.


Excertos em defesa do Real

"Les gens s’en foutent. Ils ont leur dose de fables et de personnages, ils sont gavés de péripéties, de rebondissements. Les gens en ont assez des intrigues bien huilées, de leurs accroches habiles et de leurs dénouements. Les gens en ont assez des marchands de sable ou de soupe, qui multiplient les histoires comme des petits pains pour leur vendre des livres, des voitures ou des yaourts. Des histoires produites en nombre et déclinables à l’infini. Les lecteurs, tu peux me croire, attendent autre chose de la littérature et ils ont bien raison : ils attendent du Vrai, de l’authentique, ils veulent qu’on leur raconte la vie, tu comprends ?"

(...)

“L'écriture doit être une recherche de vérité, sinon elle n'est rien. Si à travers l'écriture tu ne cherches pas à te connaitre, à fouiller ce qui t'habite, ce qui te constitue, à rouvrir tes blessures, à gratter, creuser avec les mains, si tu ne mets pas en question ta personne, ton origine, ton milieu, cela n'a pas de sens. Il n'y a d'écriture que l'écriture de soi. Le reste ne compte pas.”

(...)

"Oui, l’écriture est une arme, Delphine, une putain d’arme de destruction massive. L’écriture est même bien plus puissante que  tout ce que tu peux imaginer. L’écriture est une arme de défense, de tir, d’alarme, l’écriture est une grenade, un missile, un lance-flammes, une arme de guerre. Elle peut tout dévaster, mais elle peut aussi tout reconstruire."

(...)

"Nous portons tous la trace du regard qui s’est posé sur nous quand nous étions enfants ou adolescents. Nous la portons sur nous, oui, comme une tache que seules certaines personnes peuvent voir."


Excertos em defesa da Ficção

"Mais il n’y a pas de vérité. La vérité n’existe pas. Mon dernier roman n’était qu’une tentative maladroite et inaboutie de m’approcher de quelque chose d’insaisissable. Une façon de raconter l’histoire, à travers un prisme déformant, un prisme de douleur, de regrets, de déni. D’amour aussi. Tu sais très bien tout cela. Dès lors qu’on ellipse, qu’on étire, qu’on resserre, qu’on comble les trous, on est dans la fiction. Je cherchais la vérité, oui, tu as raison. J’ai confronté les sources, les points de vue, les récits. Mais toute écriture de soi est un roman. Le récit est une illusion. Il n’existe pas."

(...)

"Le personnage n’avait-il pas le droit de surgir de nulle part, sans aucun ancrage, d’être une pure invention ? Devait-il rendre des comptes? Non. Je ne le croyais pas. (...) Quand j’étais allée à Londres avec Louise et Paul, nous avions visité la maison de Sherlock Holmes. Des touristes venus du monde entier venaient visiter cette maison. Mais Sherlock Holmes n’a jamais existé. On vient pourtant voir sa machine à écrire, sa loupe, et sa casquette de tweed, ses meubles, son intérieur, dans une mise en scène fabriquée d’après les romans de Conan Doyle."

(...)

" Les gens, comme tu dis, ont peut-être seulement besoin que ça sonne juste. Comme une note de musique. D’ailleurs, c’est peut-être ça, le mystère de l’écriture : c’est juste ou ça ne l’est pas. Je crois que les gens savent que rien de ce que nous écrivons ne nous est tout à fait étranger. Ils savent qu’il y a toujours un fil, un motif, une faille, qui nous relie au texte. Mais ils acceptent que l’on transpose, que l’on condense, que l’on déplace, que l’on travestisse. Et que l’on invente."

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