Canção do Profeta (2023)
Este livro de Paul Lynch coloca-nos face à questão determinante que uma mãe (de 4) tem de tomar quando a Irlanda é tomada pela extrema-direita, iniciando um processo de instalação totalitarista e uma guerra contra as forças rebeldes emergentes, abandonar ou não abandonar o seu país, a sua casa, o seu marido acabado de ser preso, em parte incerta, por realização de manifestação sindical. Esta é uma questão fundamental que já me coloquei múltiplas vezes, a propósito dos judeus na Alemanha a partir de 1933, mas também em muito outros cenários dos últimos 100 anos, onde rebentaram guerras ideológicas que conduziram à destruição de milhões de vidas. Quando lemos os relatos desses cenários, passados anos, dezenas de anos, é tão fácil questionar — “porque não fugiram?” Por outro lado, esta nossa questão não deixa de conter uma profunda hipocrisia, pelo modo como os nossos próprios países se foram comportando, na relação para com os refugiados provenientes desses cenários. E é exatamente o estabelecimento da ligação entre dois temas tão atuais, o recrescimento do fascismo e das crises de refugiados, desenhada a partir do sentir de um núcleo familiar, num país europeu onde o cenário parece quase impossível, que torna este livro uma leitura obrigatória.
Lynch segue uma abordagem própria às distopias que temos visto nas últimas décadas, mas sem vírus destruidores, zombies, extraterrestres, nem tão pouco invernos nucleares, temos apenas uma mudança de governo democrática e uma família às mãos de um estado repressivo nascente. Isto não é ficção-científica, nem história alternativa, isto é ficção especulativa no seu melhor. Como disse Colum McCann, escritor irlandês, é uma obra na senda de Saramago. Temos o espaço e tempo contemporâneos, temos as vivências e crenças contemporâneas, transforma-se uma variável, a força política no governo, e desvela-se o que poderia acontecer.
A escrita é muito boa, ainda que exija do leitor, uma vez que não há capítulos, não há parágrafos, nem aspas ou travessões, todos falam, narrador e personagens, sem pré-aviso, cabendo ao leitor destrinçar quem é quem em cada momento, o que contribui para criar um universo narrativo pesado, encerrado. Mas está muito bem urdido, já que nunca se duvida de quem, quando ou onde se fala. Claro que para isso contribui o facto de fazermos toda a jornada com um conjunto muito restrito de personagens. Por outro lado, é esse restringir a uma família nuclear que nos oferece o aprofundamento do quadro, sem o que ficaríamos pelas pinceladas largas de mais uma paisagem de efeitos dos extremismos ideológicos num país. Ou seja, o enfoque na família, nas suas necessidades básicas ocidentais foi o modo encontrado pelo autor para criar aquilo que ele chama de "empatia radical", um processo forçado de compreensão do outro através da criação das condições inóspitas no local mais inesperado e próximo possível.
Existe uma particularidade na escrita de Lynch, que tem que ver com os quadros visuais que cria pela fusão de palavras com movimento, não é algo continuado, são pequenas pérolas que vai debitando e que nos fazem estacar e deslumbrar, como:
“Depois larga no balcão as moedas que traz na mão e as palavras voam-lhe da boca e levam-na até à porta.” (p.147)
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