Os Anos de Annie Ernaux

"Os Anos" (2008) é um registo romanceado de Annie Ernaux que nos leva pela mão da sua memória, de 1940 a 2006, a partir de fotografias que vai desfilando para se questionar sobre a afirmação de Chekhov, “Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância.” (excerto de “Três Irmãs” (1901)).

Os vetores do Mundo de Ernaux:

  • França, Província, Família (pais), Paris, Casa, Família (maridos e filhos)
  • Liberação Sexual, Pílula e Sida
  • Hipermercados, Consumo e Evolução Tecnológica
  • Economia e Imigração
  • Televisão, Política, Europa, Revoluções, África, Guerras e Terrorismo
  • Música, Publicidade, Cinema e Literatura

Tudo isto é visto a partir dos olhos de quem vai envelhecendo, não apenas a descrição do que existia em cada época, mas do modo como ela interpreta, primeiro como jovem, depois adulta, passando a mãe que vê o mundo pelos olhos dos filhos, e por fim avó. Vamos da adolescência rebelde, cheia de energia, capaz de abraçar e moldar o mundo à sua forma, à avó que se recolhe e apresenta dificuldade em acompanhar o ritmo das mudanças tecnológicas que operam o mundo.

“Éramos ultrapassados pelo tempo das coisas. O equilíbrio, desde sempre existente, entre o seu desejo e o seu aparecimento, entre a privação e a obtenção, rompia-se. A novidade já não despertava nem diatribes nem entusiasmo, já não assombrava o imaginário. Fazia parte do enquadramento geral da vida. O próprio conceito de novo talvez viesse mesmo a desaparecer, como já quase acontecera com o de progresso, estávamos condenados a isso. Vislumbrava-se a possibilidade ilimitada de tudo.”

Os Grandes Temas (influências reconhecidas)

  • As Raízes (E Tudo o Vento Levou)
  • A Melancolia e a Memória (Em Busca do Tempo Perdido)
  • O Sonho Desfeito da Esquerda (Vida e Destino)

Estas são as três grandes influências e as três linhas que sustentam o todo de forma coesa.

“A imagem que tem do seu livro, não existindo ele ainda, e da sensação que ele deverá transmitir, é a de que permaneceu nela depois da leitura, aos doze anos, de E Tudo o Vento Levou, ou mais tarde a de Em Busca do Tempo Perdido, e mais recentemente a de Vida e Destino, uma torrente de luz e sombra a deslizar sobre os rostos. Mas não encontrou ainda a maneira de o conseguir. Fica à espera, se não de uma revelação, pelo menos de um sinal trazido pelo acaso, como aconteceu a Marcel Proust com a madeleine mergulhada no chá.”

Pontos de Vista

  • Nós (a visão da França)
  • Ela (a visão íntima de si)

Esta visão estrutura o relato em dois fios que criam dinâmica, e nos permitem ter um gosto do geral, mais formal, de todos, e o particular, íntimo e só da autora.

“A sua principal atenção incide na escolha entre «eu» e «ela». Existe demasiada continuidade no «eu», algo de limitado e sufocante, e no «ela» demasiada exterioridade e distanciamento.”

Verbos

  • Pretérito Imperfeito

O tempo é a grande marca de todo o discurso já que apresenta tudo como estando num movimento perpétuo, em que ela, nós, temos apenas a capacidade de assistir a uma pequena fração enquanto vivemos neste planeta.

“A efervescência com o que se passava no mundo diminuía. O inesperado cansava. Algo de impalpável nos arrebatava agora. O espaço da experiência perdia os seus contornos familiares.”

Apesar de ter sido professora durante quase 30 anos pouco fala da profissão, assim como não fala da sua carreira como escritora, dos livros que escreveu, dos prémios que recebeu, ou de outros escritores. Annie Ernaux trabalha um retrato realista duma classe média francesa do final de século XX, oferecendo assim uma leitura no pólo oposto do retrato da aristocracia francesa do início do século XX de Proust

“Devido aos seus rendimentos confortáveis, por estar há alguns anos como professora «por antiguidade», ela pode pagar a todos este fim de semana na praia, naquele desejo de continuar a ser a garante da felicidade material dos filhos, para compensar em cada um a possível dor de estar vivo, pela qual ela se sente responsável uma vez que os pôs no mundo.”

Se por vezes Ernaux nos cansa com listagens de acontecimentos, mais na primeira metade do livro, essas são totalmente redimidas pelas interpretações auto-sócio-literárias que realiza na segunda metade do livro, atingindo momentos de grande clarividência ao aproximar das páginas finais.

"É agora que deve dar forma, através da escrita, à sua ausência futura, tomar em mãos este livro, ainda em esboço e em milhares de notas, e que durante mais de vinte anos tem vivido a par consigo, como uma dobra da sua existência, devendo, simultaneamente, amplificar a duração que ele percorre, distendendo-a por mais e mais tempo."

"O importante, para ela, é a possibilidade de captar a duração que constitui a sua passagem pela Terra numa determinada época. Esse tempo que a atravessou, esse mundo que ela registou apenas por viver."

O livro saiu em 2008, 7 anos depois de Ernaux se reformar, mas teria ainda de esperar 14 anos pelo prémio nobel.

Comentários

  1. Tenho-o há já algum tempo na minha lista de desejos e depois de ler a tua resenha fiquei ainda com mais vontade de o ler, obrigada :)

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