Continuer (2016)

"Continuer" de Laurent Mauvignier, é um romance que se abre como uma ferida. A viagem de uma mãe com o filho adolescente, a cavalo pelo Quirguistão, é menos um gesto de fuga e mais um mergulho forçado num território interior onde cada gesto reverbera com uma intensidade que Mauvignier domina como poucos. A força do livro está logo no início, onde a emoção se cola à pele, quase como se a própria paisagem fosse moldada pelas tensões entre os dois.

No entanto, o romance estende-se demasiado no meio, com detalhes e descrições que, apesar de belos, vão diluindo a tensão que a abertura prometia. Mauvignier escreve com aquela precisão lírica que o aproxima de Proust — uma atenção microscópica ao detalhe emocional, aos pequenos tremores do corpo e do pensamento — mas o seu gesto é mais visceral do que filosófico. A emoção aqui não é conceito: é matéria sensorial. 

Há uma cena que condensa esta força: o filho, Samuel, entra no carro e escolhe sentar-se no banco de trás, não ao lado da mãe. Ela sabe que ele espera a explosão. Ele recolhe-se atrás justamente para poder fechar os olhos, para se proteger dela. Mauvignier narra este gesto com uma delicadeza ferida, deixando a câmara imóvel sobre os pormenores: as pálpebras que cedem ao sono, a tentativa de resistir à luz da manhã, a cabeça que tomba, a voz da mãe que o desperta como um golpe. Tudo isto dentro de um habitáculo apertado quase sem ar.

É talvez nesta forma de transformar emoções em espaço — neste modo de converter o que é íntimo em geografia sensível — que Mauvignier é mais singular. O romance vive e respira dessa paisagem emocional, mesmo quando o ritmo se torna irregular. 

"Continuer" não é um romance perfeito, mas é um romance verdadeiro naquilo que importa: o confronto com aquilo que carregamos, com o que nos formou e com o que ainda não sabemos resolver. E, por instantes, Mauvignier faz-nos sentir que a literatura pode realmente tocar a nossa ferida interior.

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