Escrever através dos outros

Não conhecia Philippe Lançon, cheguei a este seu livro através do acontecimento que lhe deu origem, o ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo, em 7 de janeiro 2015. Lançon, crítico literário, escrevia para o Charlie Hebdo, e para o Libération, onde tinha acabado de publicar a análise de “Submission” de Michel Houellebecq que seria posto à venda nesse mesmo dia. Lançon foi um dos poucos sobreviventes do ataque, apesar de ter sido atingido na cara e maxilar, tendo passado quase um ano no hospital, onde foi submetido a quase vinte operações para recuperar alguma das funcionalidades vitais — beber, comer e falar.


Lançon escreve belissimamente. A forma do discurso é perfeita. Contudo, não faltam só competências narrativas, capazes de envolver o leitor, falta também mundo, nomeadamente matéria humana. Todo o livro é escrito como um conjunto de análises literárias. Análises de objetos e não de pessoas, de experiências humanas com sentires, vivências, alegrias, dores e aflições. Faltando-lhe essa capacidade, de analisar o que sentem as pessoas, refugia-se nos livros e nos autores.

Rodeia-se de Proust, Mann e Kafka. Lê-os durante a sua recuperação no hospital e cita-os, esquecendo que se esses autores chegaram onde chegaram, não foi a citar outros, foi a dar conta das suas vidas vividas. Lançon não consegue ir além da descrição das ações, dos médicos, e dos tratamentos, de quem o visita. Não há nada além de descrições. Não só nada acontece, como o que descreve é envolvido em camadas de abstração que nos distanciam dessas mesmas descrições.

Existe um momento alto, e forte, e no qual pretende descrever ações, as do ataque. Mas não só este acontece cedo, demasiado cedo, a 1/5 do livro, criando um pico que não mais se volta a repetir, como mesmo essa descrição é feita a grande distância, criando a expectativa de que algo mais nos será dado à frente.

Em suma, senti o autor, Philippe Lançon, como uma pessoa que vive a vida através dos livros, vive através das experiências dos outros, incapaz de se dar à realidade, de a expressar e fazer sentir.

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