Proust, roman familial (2023), Laure Murat
Há uma aristocracia francesa que sobreviveu à Revolução sem nunca verdadeiramente cair. Não desapareceu: adaptou-se. Conservou títulos, rituais e, acima de tudo, uma forma de estar onde tudo se decide na superfície: nos modos, na contenção, na etiqueta, que funcionam como código moral. Laure Murat nasceu dentro desse mundo. É a partir dessa origem que escreve "Proust, roman familial" (2023).
O livro não é um estudo académico sobre "A la Recherche du Temps Perdu" (1913-1927). É mais íntimo e mais incisivo: Murat lê Proust a partir da ferida de ter pertencido ao mesmo universo que ele descreveu e criticou. E, ao fazê-lo, mostra que a aristocracia francesa não é um resquício do passado, mas uma forma de vida ainda ativa, estrutural, discreta e eficaz.
A ideia central é simples e terrível: na aristocracia, a vida não se vive, representa-se. A imagem é a lei. A intimidade, o desejo, o sofrimento, a identidade, tudo deve permanecer dentro do quadro previamente definido. O gesto decisivo é não quebrar a forma.
É neste contexto que a cena central do livro se torna brutal. Quando Murat anuncia à mãe que vive com uma mulher, não está apenas a revelar algo íntimo. Está a romper o pacto estético que sustenta o mundo familiar. A mãe responde com uma frase curta, definitiva: «Tu incarnes à mes yeux l’échec de toute une éducation morale et spirituelle.»
Não é a homossexualidade que é intolerável. É a exposição. Murat explica-o com clareza: havia homossexuais no círculo familiar e social, e eram aceites, desde que invisíveis. Ser, mas não parecer. A imagem sempre acima da vida.
E aqui está o ponto que me atingiu de forma cortante: a família de Murat lia. Lia muito. Era instruída, cultivada. E ainda assim, incapaz de amar. É difícil reconhecer isto: a leitura não torna ninguém mais sensível. Tanto pode servir para abrir o mundo, como para o selar hermeticamente. Neige Sinno tinha razão ao afirmar que "a literatura não salva". Só agora o percebi completamente.
A diferença não está nos livros, mas no uso que se faz deles. A mãe de Murat lia para preservar a forma.
Murat leu para escapar dela. E escapou. Saiu de França, cortou o laço, reconstruiu a vida, tornou-se professora de Literatura Francesa na UCLA. Não para fugir da aristocracia, mas para continuar a pensar o que significa vir dela.
Talvez por isso este livro me tenha tocado de forma tão direta. Não porque eu tenha vivido a dor de Murat, mas porque reconheço o trabalho interior de tornar-se alguém para além do destino herdado. Recorda-me Education de Tara Westover, não rejeição dos pais, mas a necessidade de continuar a viver onde já não é possível permanecer. Murat mostra que a origem pode ser amada e, ainda assim, insuficiente. Há vidas que exigem transfigurar o lugar de onde se veio, honrando-o, mas ultrapassando-o. E é nesse gesto lento e difícil, onde se constrói aquilo que ainda não existia para nós, que a literatura encontra novamente sentido.
5★

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