La Maison vide (2025)

Há escritores que nos surpreendem pela capacidade de inventar mundos; Laurent Mauvignier surpreende, antes de mais, pela forma como nos faz entrar dentro de consciências frágeis, quebradas, e pela coragem de nos manter ali, nesse interior ferido, o tempo suficiente para que reconheçamos algo de nosso. "La Maison vide" (2025), que li agora depois de "Histoires de la nuit" (2020) e de "Continuer" (2016), confirma aquilo que já suspeitava: há, na obra de Mauvignier, uma arte particular de fazer literatura a partir da tensão interior, uma maneira de escavar a vida emocional que poucos conseguem com esta profundidade.

O impacto veio em três etapas. Histoires de la nuit foi a primeira explosão: um romance que é, ao mesmo tempo, thriller, tragédia e estudo sobre o silêncio social. Continuer revelou outro lado, uma relação mãe-filho atravessada por ressentimento e ternura, escrita com vibração entre dois interiores que não se conseguem tocar. Mas "La Maison vide" ultrapassa os dois. Não apenas porque é um romance imenso, que respira devagar e exige que respiremos com ele, mas porque Mauvignier atinge aqui uma maturidade rara: ele já não escreve apenas sobre as feridas, mas sobre a maneira como uma ferida inicial se propaga por gerações, de forma quase imperceptível, até que alguém se vê obrigado a olhar de frente o vazio deixado pelos que vieram antes.

Apesar do título, a casa não é o verdadeiro protagonista. Ela aparece sobretudo como abertura e fecho, como enquadramento ritual do narrador que tenta compreender o suicídio do pai e desenterrar as histórias desaparecidas da família. Mas a casa é sobretudo uma porta: ela dá acesso ao que realmente importa, que é a trajectória de duas mulheres, Marie-Ernestine e Marguerite, e a sombra estrutural que um homem — Firmin, o patriarca — lança sobre todas as vidas que o seguem. O romance abandona rapidamente a arquitetura da casa para mergulhar nos corpos, nos medos, nos gestos fracassados, na educação emocional e religiosa de Marie-Ernestine, na sua fragilidade, na sua inclinação para o silêncio e a culpa, e depois na devastadora solidão de Marguerite, já adulta, arrastada para uma vida de humilhação.

É aqui que Mauvignier impressiona: ele não narra acontecimentos; narra a maneira como as consciências atravessam esses acontecimentos, a forma como cada gesto, cada palavra não dita, cada expectativa, cada obrigação social, altera a forma como uma pessoa respira. Há, nos seus romances, um dispositivo que reconheço agora com clareza: quando algo importante está prestes a acontecer, ele não descreve o acontecimento — descreve aquilo que a personagem imagina que acontecerá. É como se cada momento decisivo abrisse um corredor de futuros possíveis, todos eles já vividos por dentro antes de se tornarem reais, ou antes mesmo de falharem. Ele escreve esse “futuro iminente” como se fosse presente, e isso produz uma tensão emocional que quase suspende o tempo. Confundimos o que a personagem teme com o que realmente acontece, e nessa confusão surge o espaço onde o trauma se instala.

Esse regime do “que poderia acontecer” é contínuo em "La Maison vide", mais ainda do que nos outros dois romances. É uma técnica arriscada, porque cria aquelas longas planícies em que a narrativa parece não avançar, em que sentimos a saturação do detalhe e da interioridade, quase como se estivéssemos a caminhar num terreno denso demais. Mas quando a explosão chega, compreendemos que a planície fazia parte da construção da queda. Mauvignier trabalha a tensão como um músico trabalha o silêncio: alonga até ao desconforto, estica o ritmo, obriga-nos a habitar o intervalo. Depois, subitamente, atira-nos contra um precipício emocional e é aí que ele é magistral.

Em "La Maison vide", o precipício maior é Marie-Ernestine. Toda a primeira metade prepara, com rigor quase cruel, o seu encontro com Jules. A educação religiosa, o piano, a formação no convento, a submissão ao pai, a falta de amor, a falta de voz. Tudo converge para aquela noite de núpcias em que Mauvignier atinge um dos momentos mais poderosos da sua obra. A cena não é apenas violenta; é escrita com uma precisão devastadora da forma como duas consciências podem estar no mesmo espaço sem se reconhecerem. Ele alterna, inclina, dobra a focalização, como um malabarista que mantém duas esferas suspensas no ar: o desejo infantilizado de Jules, e o terror mudo de Marie-Ernestine. A cena é insuportável e belíssima, porque ele não descreve o acontecimento, ele descreve o que cada um sente que o acontecimento significa. E é essa interioridade cruzada que nos destrói.

A partir daí, o romance já não tem retorno. O destino de Marguerite é o prolongamento inevitável dessa primeira ferida. E o narrador, nascido muito depois, tenta recolher cacos num espaço onde já não há nada para salvar. A casa está vazia; as vidas passaram sem nunca terem realmente acontecido. O livro inteiro é um trabalho sobre a herança do silêncio, a forma como a violência não precisa de ser espetacular para ser estrutural, a maneira como as expectativas sociais destroem lentamente aquilo que poderia ter sido alegria.

Laurent Mauvignier na receção do Goncourt 2025

Se "Histoires de la nuit" era a violência exterior e "Continuer" era a violência íntima entre dois seres em conflito, "La Maison vide" é a violência geracional — aquela que ninguém vê, que ninguém nomeia, e que ainda assim molda tudo. É, de longe, o livro mais adulto, mais extenso, mais profundo de Mauvignier. O Goncourt 2025 não se justifica apenas pela ambição formal ou pela beleza da escrita; justifica-se porque "La Maison vide" é um romance que tenta compreender como é que uma vida humana se torna aquilo que se torna. E porque Mauvignier mostra, com uma honestidade rara, que às vezes não se trata de escolhas, mas do destino silencioso que recebemos antes mesmo de nascermos.

É literatura que não oferece consolo. Mas oferece verdade, e isso é muito mais difícil de alcançar. E por isso "La Maison vide" fica connosco como os livros essenciais ficam: não pelo que acontece, mas pelo que nos faz sentir que poderia ter acontecido connosco.

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