Alan Wake II (2023)

“Alan Wake II” foi nomeado para oito categorias do Game Awards 2023, ganhou três: Best Game Direction; Best Narrative; Best Art Direction. Podia ter ganho o Game of the Year, mas esse foi para “Baldur’s Gate 3”, ainda assim a revista Time não deixou de lhe atribuir o título. Para mim, não é apenas jogo do ano, será um dos jogos desta década. Se a narrativa ganha toda a proeminência merecida num jogo em que a personagem principal é um escritor, aquilo que torna “Alan Wake II” extraordinário é a sua direção. Estamos perante um artefacto que combina, na perfeição, cinema, vídeo, animação, rádio, literatura, ilustração, entre outras formas de expressão, criando um festim multimédia como não via desde os anos 1990. Esta minha descrição pode servir para afastar alguns. Jogos de aventuras multimédia há muito que deixaram de nos encantar. “Phantasmagoria” (1995) ou “The X-Files Game" (1998) foram bons quando saíram, mas hoje estão tão datados que nem uma remasterização os conseguiria revitalizar. No entanto, o diretor Sam Lake, que já nos tinha surpreendido com três dos jogos mais emblemáticos da história dos videojogos — “Max Payne” (2001), “Alan Wake” (2010) e “Control” (2019) — parece ter decidido juntar não só tudo de todos, mas todas as suas competências, desenvolvidas ao longo de mais de 20 anos, para construir um objeto multimédia magistral. 


A análise de um jogo destes não se esgota num pequeno texto de blog, como tal opto por dar aqui conta apenas de alguns dos elementos que tornam a direção do jogo tão particular, mas antes disso, um breve enquadramento do jogo e narrativa.



A estrutura narrativa foi dividida em duas linhas, suportadas por dois personagens jogáveis, a agente do FBI, Saga Anderson, que chega à cidade Bright Falls para investigar um culto de assassinos, e Alan Wake, o escritor que ficou preso no Dark Place, no primeiro jogo (não joguei o primeiro quando saiu, iniciei o remake, mas não o terminei). Cada personagem tem mecânicas específicas, e somos obrigados a realizar partes do jogo com um, e outras partes com o outro. Foi dada alguma liberdade na linearidade temporal, podemos definir quando jogamos com Alan Wake ou Saga Anderson, que no fundo define, quanto jogamos no mundo real ou no Dark Place. Sendo interessante a liberdade, neste caso não me pareceu acrescentar muito, tanto que acabou sendo necessário o jogo estar sempre a lembrar-nos que também podíamos jogar com a outra personagem. 

O meu grande destaque vai para a narração em off. Algo que já tínhamos visto em "Bastion" (2011), e que aqui volta a funcionar maravilhosamente, com a adicionante de que aqui essa narração é totalmente suportada pelo universo narrativo e do gameplay. Quando jogamos com Saga, a maior parte do nosso trabalho centra-se no interior da sua mente, na chamada Mind Place, que é uma área onde analisamos as provas do crime, e tentamos solucionar os problemas. Quando jogamos com Wake, estamos também dentro da sua cabeça, já que as principais mecânicas têm que ver com os processos de decisão de reescrita de histórias. O gameplay de ambos aproxima-se, mas tem objetos e objetivos distintos, o que enriquece o universo de cada um. Mas o facto de estamos dentro da cabeça deles, faz com que possamos ouvi-los a refletir, e isso foi para mim o melhor de todo o jogo, já que me permitiu criar uma conexão com os personagens como ainda não tinha sentido em quase nenhum jogo.

Writer's Room (Alan Wake)

Mind Place (Saga Anderson)

Naturalmente, que não bastou a mecânica narrativa, a conexão com o mundo e os personagens via narração off, acontece porque o guião está escrito de forma belíssima. Não estamos ali apenas a resolver um crime, ou a tentar perceber como fugir de um lugar, estamos realmente dentro do mundo pessoal e humano de cada personagem. Temos acesso aos seus sentires, medos, desejos, vontades. Somos apresentados às suas famílias, filhos, avós, namorados, maridos, e todas as tensões que daí advém e contribuem para densificar, mas acima de tudo aprofundar a psicologia dos personagens envolvidos. A riqueza das relações humanas oferecida é imensa, e em ambiente de jogo dificilmente poderia ter ido mais além.

De certo modo, eu diria que este trabalho de aprofundamento humano dos personagens, vem de alguma forma alterar ou estender o género do horror. Alan Wake II situa-se nesse domínio, chegando mesmo por vezes perto do Survival. Mas esta capacidade para enriquecer os personagens, as teias humanas, adensadas pelo carácter literário do universo, faz com que nos encontremos diante de um horror algo humanizado. Julgo que isto acontece não apenas pelo aprofundar psicológico, mas também, pelo modo como a narração é usada para nos ajudar e guiar dentro do jogo. O guião está tão bem feito que é capaz de antecipar as nossas maiores dificuldades, funcionando amiúde a nossa relação como os personagens, quase como se eles fossem nossos assistentes. Nesse sentido, sentimos que estamos a jogar em parceria com eles. Ora isto faz como que não estejamos sozinhos no meio de todo aquele horror, e de certo modo nos faça sentir mais confortáveis. Bem sei que o objetivo do horror é o contrário, provocar a desconfortabilidade, mas exatamente por isso é que digo que este é um novo tipo de horror. No qual o sentimos, mas sem, contudo, não deixar de ter sempre a esperança acesa no fundo no túnel.

Ajuda bastante à experiência gostar do tema da Literatura, mas mais particularmente dos processos de criação, no caso dos escritores, porque Alan Wake é um escritor que se perdeu no mundo da sua própria imaginação tornada no Dark Place de onde ele nunca mais conseguiu sair. Torna-se inevitável ligar muito deste universo a Stephen King, não só aos seus mundos de horror mistério, mas também à sua pessoa enquanto escritor, nomeadamente ao seu livro de memórias “On Writing” (2010), em que fala dos dramas da arte da escrita, mas as suas obras maiores em que coloca em cena escritores: “The Shinning” (1977) e “Misery” (1987).

“Alan Wake II” é um jogo obrigatório para qualquer amante de videojogos, mas também para amantes de literatura e dos processos criativos. É um jogo para ser sorvido com calma, já que está pejado de pequenos detalhes, nomeadamente narrativos, que fazem a delícia de toda a experiência. Para quem não tem muita experiência com o género survival, recomendo jogar em modo Fácil já que existem alguns bosses bem difíceis de ultrapassar.

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