"Fiasco" (1986) de Stanislaw Lem

Stanislaw Lem (1921-2006) é considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX, tendo-se distinguido por uma produção prolífica que abrange 18 livros de ficção, dezenas de contos e dezenas de ensaios filosóficos. Fiasco, publicado em 1986, foi o último livro de ficção de Lem, coroando um percurso literário que inclui a sua obra de maior destaque, Solaris (1961). Nesta sua derradeira obra, Lem retoma temas como a exploração do espaço e o confronto com inteligências alienígenas para questionar implicações éticas, políticas e filosóficas do desenvolvimento tecnológico.

A ação arranca na órbita de Titã, uma lua de Saturno, com a nave espacial Eurydice a ser lançada numa missão que visa o estabelecimento de contacto com uma civilização alienígena situada numa “janela temporal” ótima, isto é, nem demasiado incipiente, nem demasiado avançada para se poder estabelecer comunicação. A bordo seguem militares, cientistas de várias áreas e um padre. Com estes, segue “DEUS”, a inteligência artificial que, tal como o HAL 9000 é uma presença constante na nave, responsável pela gestão de sistemas, mas também pela avaliação psicológica dos tripulantes.

Deixo alguns pontos críticos que a leitura evoca:

  1. Primeiro contacto: Lem regressa ao tema recorrente do “primeiro contacto”, explorando a forma como o ser humano procura encontrar vida inteligente e estabelecer comunicação, adotando uma perspetiva céptica, expondo a dificuldade de haver uma correspondência de códigos que permitam estabelecer a comunicação.
  2. Inteligência e controlo: Um dos aspetos mais interessantes de Fiasco é a interrogação sobre os limites da IA. Com o nome “DEUS” Lem atribui à inteligência artificial a omnipresença e omnisciência, mas simultaneamente, impõe-lhe limites de atuação no modo como pode perscrutar os humanos e como pode revelar-lhes o seu escrutínio, dando conta dos efeitos nefastos da IA sobre a condição humana.
  3. Guerra: Ainda que a missão seja pacífica, Lem insere diversas ações militares que convocam reflexões sobre o potencial bélico presente em civilizações avançadas, com a tripulação a ser envolvida em discussões complexas de tomada de decisão. Senti algum excesso nesta vertente, ainda que seja preciso situar o livro escrito numa Polónia a viver por detrás do Muro e em plena Guerra Fria.  
  4. Impacto da ciência e tecnologia na civilização: Lem projeta um futuro em que a conquista do espaço exige engenharia aeroespacial extremamente avançado, mas simultaneamente questiona se esse avanço técnico é condição suficiente para dialogar com o Outro. Neste sentido, e olhando ao ponto anterior, da abordagem militar, que considerei excessiva, podemos pensá-lo como uma crítica, e uma fragilidade humana, ou mesmo civilizacional. O desenvolvimento tecnológico per se, não é garantia de desenvolvimento em paralelo da moral, o que pode justificar a razão do fiasco, a que o próprio título alude.

Sobre a leitura, Fiasco oferece uma profundidade discursiva bastante invulgar. Lem investe grande parte do texto (> 70%) em descrições minuciosas de natureza científica e tecnológica, que incluem discussões sobre física teórica, sistemas de propulsão, configurações da nave e cenários futuros de engenharia aeroespacial. Embora tais descrições sejam conceptualmente interessantes, podem tornar-se algo extensas e, por vezes, cansativas, dado que o autor recorre a neologismos e a processos hipotéticos tão rebuscados, a ponto de começarem a aproximar-se mais da fantasia do que da especulação. Por outro lado, quando a narrativa avança para diálogos e cenas de ação, a escrita de Lem revela a sua força, tornando palpável as consequências práticas das ideias expostas. Não deixa de ser admirável a forma como o autor consegue juntar a sua capacidade especulativa científica a um tão bom domínio narrativo.

Um ponto que considero menos conseguido na estrutura narrativa, é o primeiro capítulo, não per se, já que está muito bem escrito, mas pela dimensão que ocupa. Este capítulo parece fazer parte de um conto prévio de Lem não publicado, e embora sirva para contextualizar a época e introduzir certas personagens, a verdade é que mesmo quem regressa à narrativa principal, não volta a estabelecer qualquer ligação com toda essa primeira parte passada numa era totalmente distinta, o que acaba gerando um sentimento de desconexão desse segmento com o todo.

No entanto, Lem é muito hábil no enriquecimento da narrativa quando recorre a múltiplas referências históricas, literárias e culturais. Não se trata apenas de meros ornamentos, mas sim de formações simbólicas que ajudam a ilustrar ou a contrastar ideias que surgem ao longo do texto, desde as alusões à colonização e destruição dos impérios Maia e Azteca pelos conquistadores espanhóis, aos episódios bíblicos de Sodoma e Gomorra, assim como à semiótica de Umberto Eco com referências a “O Nome da Rosa”.

Não posso deixar de referir um certo niilismo que perpassa toda a obra. Sendo este o último livro de ficção que escreveu, é plausível pensar que Lem culmina aqui um percurso de desencanto face à possibilidade de encontrar alguma “verdade” ou forma de entendimento recíproco entre civilizações de mundos distintos. Não obstante, o caminho que nos propõe, ainda que sombrio, é intelectualmente estimulante, permitindo-nos refletir sobre a condição humana, não só no universo, mas também no nosso próprio planeta.

Ler mais

"Philosophical Novels #1: Fiasco by Stanislaw Lem" vídeo de Michael Bartlett
"Fiasco – Stanisław Lem" por Janusz R. Kowalczyk


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