A Parede (1963), engenharia de solidão
Quando comecei A Parede, pensei que era um romance sobre o Muro de Berlim. A coincidência temporal — início dos anos 60 — e o título pareciam apontar para isso. Mas rapidamente percebi que o muro de Marlen Haushofer é outro: não separa ideologias, separa a espécie do resto da vida. E o que encontrei não foi um panfleto político nem um manifesto feminista, mas uma experiência biológica da consciência. Um laboratório do isolamento humano.
A parede funciona como um dispositivo narrativo simples, quase de ficção científica: uma mulher fica subitamente sozinha, cercada por uma barreira invisível. Mas esse pretexto rapidamente se desfaz. Haushofer não escreve uma aventura de sobrevivência como Robinson Crusoé (1719) escreve o diário de alguém que se tornou prisioneira da própria existência. Onde Defoe procurava reconstruir a civilização, ela busca apenas manter-se viva, e lúcida. É uma robinsonada desprovida de fé no progresso, em que a conquista é substituída pela observação, e a ação pelo gesto mínimo.
O livro transforma o quotidiano numa engenharia da sobrevivência. Cada ato — cortar lenha, tirar leite, semear batatas, cuidar do cão e da vaca — é descrito com o rigor de um manual técnico. Lê-se quase como The Martian (2014), mas sem a NASA, rádio, nem promessas de resgate. O engenho humano está ali, mas reduzido ao essencial: um corpo a persistir. O detalhe é o que a salva do desespero, mas também o que revela o absurdo da sua condição. Haushofer compreende que a repetição é a nova transcendência: quando já não há sentido, o fazer torna-se o único substituto da fé.
E é precisamente nesse quotidiano meticuloso que surge o elemento mais desconcertante: o olhar feminino, não enquanto ideologia, mas enquanto biologia. A mulher que narra A Parede não se emancipa, regressa. A natureza não é metáfora, é carne, gestação, leite. Todo o romance é atravessado por ciclos de acasalamento, prenhez e nascimento — da vaca, do gato, dos animais que ela protege — como se a vida teimasse em reproduzir-se apesar da ausência de humanidade. É aqui que o livro se distingue de todas as robinsonadas masculinas: o centro não é o domínio, é o cuidar. E esse cuidar é, paradoxalmente, o que a prende.
Muitas mulheres leem A Parede como um gesto de libertação: a prova de que o homem é dispensável. Mas Haushofer é mais cruel do que libertária. O seu texto mostra que a ausência do masculino não é libertação, é estagnação do ciclo vital. Sem machos, não há descendência; sem vaca prenhe, não há leite; sem eros, só resta a rotina da conservação. O livro não exalta a mulher isolada; mostra o preço da sobrevivência sem alteridade. O feminismo acidental do romance dissolve-se na biologia.
No final, Haushofer introduz uma perturbação breve, quase brutal, que muitos quiseram ler como castigo simbólico ao patriarcado. Não o li assim. O que emerge ali não tem rosto social, nem moral: é apenas o retorno do acaso. Uma irrupção súbita do absurdo que destrói qualquer tentativa de sentido. Haushofer não pune os homens, ela suspende a própria narrativa.
E é nesse silêncio posterior que o romance se aproxima, por vias muito distintas, do mundo que Rachel Carson descrevera um ano antes em Silent Spring: um planeta onde o canto dos pássaros cessou e o humano já não é ouvido. O livro de Haushofer é a versão íntima dessa catástrofe, não o alerta, mas a crónica depois do fim.
No fim, resta apenas o diário. A escrita torna-se a forma última de sobrevivência, um modo de conservar pensamento como se conserva leite ou batatas. Haushofer não cria uma heroína; cria um organismo pensante. O isolamento não é metáfora de emancipação, mas uma experiência-limite sobre o que resta de humano quando já não há sociedade, nem futuro, nem linguagem partilhada.
A Parede é um dos romances mais friamente belos do século XX. Mas não é grito de libertação, é um murmúrio da espécie à beira da extinção. Se Robinson Crusoé fundou a modernidade com a fé no engenho e na ordem, Marlen Haushofer escreve o seu epitáfio: o engenho continua, mas a primavera já se calou.
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