Pés de Barro, (2025), Nuno Duarte

O romance de estreia de Nuno Duarte, vencedor do Prémio LeYa 2024, abre com a força rara de quem parece dominar a frase longa como poucos. A oralidade ritmada, a torrente de factos e a energia descritiva criam um efeito de fluxo contínuo que arrasta o leitor. É uma escrita de cadência popular, quase falada, com o vigor das grandes vozes narrativas da oralidade. À primeira leitura, Pés de Barro impressiona. Soa a novo, a ousado. Parece dar corpo, finalmente, a um quotidiano português raramente representado com tal vitalidade.

Mas a torrente, que se apresenta como espontânea, é na verdade um exercício de construção documental. Duarte compõe o seu fluxo a partir de enxertos: efemérides, acidentes, notícias, referências históricas, slogans de época. Tudo entra — o desastre do Cais do Sodré, o incêndio do Teatro D. Maria, a morte de JFK, os Beatles, o “nosso Vietname”, o Sporting na Taça das Taças. É uma sucessão de acontecimentos colados de fora para dentro, um inventário onde o efeito estético suplanta o significado.

O resultado é, por vezes, impressionante; mas com o avanço da leitura a torrente perde densidade afetiva e revela-se uma colagem de recortes de jornal, mais próxima de um almanaque do que de uma narrativa com alma. Faltam “oásis de experiência”, momentos de pausa onde as personagens e o leitor possam respirar e transformar-se.

O grande problema de Pés de Barro é o seu realismo ilusório. O autor descreve o Portugal dos anos 1960 com aparato histórico, mas sem consciência das condições materiais e sociais que o definiam. O caso mais evidente é o do irmão do protagonista, Quim, que sonha entrar na Universidade. 

Num país onde o ensino superior era privilégio de uma ínfima elite — em 1962 havia apenas 24 mil estudantes num país de 10 milhões —, a aspiração universitária de um rapaz analfabeto ou semi-analfabeto, filho de pais analfabetos, é pura fantasia. Não há na narrativa um gesto, um professor, uma bolsa, um acaso que explique essa excecionalidade. Há apenas a palavra “Universidade”, repetida como um mantra. 

O mesmo se aplica ao personagem Ângelo Barraquinho, o vizinho autodidata com “centos de livros” e um filho professor universitário em Coimbra. No bairro popular de Alcântara, sob uma ditadura que desincentivava o estudo e punha a 4.ª classe como limite suficiente para o povo, essa ascensão seria um milagre social. O romance trata-a como banalidade.

Didier Eribon, em Retour à Reims, descreve o que é realmente ascender: estudar à noite, trabalhar em turnos, enfrentar concursos e humilhações de classe. E ele fala da França dos anos 1970, uma democracia com bolsas e apoios. Mesmo assim, o percurso era quase impossível. Se até na França de Eribon o talento não bastava, no Portugal de Salazar era impensável

Nuno Duarte parece não saber isto. Ou talvez nunca tenha sentido o peso real da desigualdade. A sua ficção projeta no passado um ideal de mobilidade próprio das democracias tardias: um anacronismo com boas intenções e má consciência histórica.

Alguns episódios confirmam o desequilíbrio entre gesto literário e compreensão humana. A cena em que Victor procura o perdão do pai moribundo, recebendo em troca um flato e a destruição dos envelopes com o seu dinheiro, é uma imagem forte, mas culturalmente dissonante. Um pai português pobre, nos anos 60, sentiria vergonha por não ter posto comida na mesa, não fúria porque o filho roubou para comer. E um filho moldado por um pai sádico dificilmente manteria a pureza ingénua e perseverante de Victor. O grotesco substitui a verdade emocional. A cena impressiona, mas soa a experimento, não a vida.

A explicação talvez esteja na matéria-prima usada por Duarte: jornais. A imprensa da época era censurada; o que nela se podia ler era o que o regime autorizava publicar. Quem investiga a realidade apenas através de jornais não encontra o país, mas a sua máscara oficial. Essa limitação reproduz-se no livro: o Portugal de Pés de Barro parece uma comédia de costumes, um país alegremente atrasado mas funcional, onde a política é um ruído distante. A ditadura e a repressão aparecem apenas como pano de fundo retórico. É o retrato de uma sociedade filtrada pela censura, sem fome, sem medo, sem culpa.


Pés de Barro é, sem dúvida, um livro de estreia arrojado. Há talento, há ambição formal. Mas falta-lhe uma leitura verdadeira do mundo. A torrente estilística existe, mas sustenta-se num conhecimento de segunda mão, o da memória oral, das notícias censuradas e de um imaginário histórico herdado. O resultado é um romance que acredita descrever o povo, mas que o faz a partir de fora, sem chão económico nem consciência política.

No fundo, o que Pés de Barro mostra é o abismo entre a realidade e o seu sentido. É a diferença entre quem reproduz o ruído da história e quem o compreende por dentro. Uma torrente que corre apenas à superfície.

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