Chuva Pesada, (1966), Don Carpenter

Há livros que parecem destinados a entrar no cânone e, no entanto, ficam à porta. Chuva Pesada é um desses casos, admirado, citado, mas raramente amado. A leitura é envolvente e contínua. Seguimos Jack como quem observa uma mente em movimento, tentando perceber o que o conduz, o que pensa, o que o impede de parar. Há uma coerência narrativa que prende e cria expectativa, como se algo decisivo estivesse sempre prestes a acontecer.

Mas esse momento nunca chega. Carpenter constrói Jack não como uma personagem, mas como uma persona, uma figura pensada para representar um tipo de homem. O problema é que, quando o leitor não se reconhece nesse tipo, a identificação quebra-se.

Jack, órfão, ladrão, alcoólico, boxista, prisioneiro, acumula experiências, mas não ganha espessura. Acompanhamos o percurso, mas não sentimos proximidade. Quando Carpenter tenta transformá-lo num homem culto, interessado em Dostoiévski e na ópera, o texto perde verosimilhança. A reflexão filosófica surge como voz do autor, e não como evolução natural da personagem. A escrita torna-se discursiva, e a autenticidade que sustentava a primeira metade do livro esbate-se.

O mesmo acontece com Sally, a mulher que aparece subitamente como promessa de redenção. A sua presença não tem preparação nem consequência emocional suficiente. É uma função narrativa, não uma relação construída. Tudo se encaixa, mas pouco se sente.

Carpenter partilha o mesmo ponto de partida de Rabbit de Updike: o homem americano à deriva, incapaz de lidar com a liberdade que o país lhe deu. Em Rabbit, Run (1960) o homem foge da mulher e do filho porque não suporta a rotina; em Chuva Pesada, o homem move-se entre marginais porque não sabe o que fazer com o vazio. Ambos tentam pensar, mas vivem à superfície. O de Updike procura sentido no conforto; o de Carpenter, no caos. São dois retratos de uma América em crise de significado.

É também inevitável recordar Stoner (1965) de John Williams, o livro que muitos apontam como o parente próximo de Chuva Pesada. Ambos retratam homens comuns, sem glória e sem ascensão. Mas onde Williams escreve de dentro, Carpenter escreve de fora. Em Stoner, a vida banal adquire peso e dignidade; em Chuva Pesada, mantém-se como observação. Williams faz da dor uma forma de claridade; Carpenter faz dela apenas prova de resistência. A diferença está no olhar: Williams compreende as suas personagens, Carpenter analisa-as. Por isso, Stoner emociona, enquanto Chuva Pesada apenas interessa.

Chuva Pesada tem o talento, a clareza e a ambição que definem um bom escritor, mas falta-lhe a inevitabilidade emocional que faz um grande livro. Carpenter aproxima-se do essencial, mas não o alcança. Respeitamos o projeto e a honestidade, mas o impacto é mais intelectual do que humano.

Talvez deva ser lido assim: como o retrato de um autor que tentou compreender a condição humana e ficou à beira de o conseguir. Um livro importante, consistente e lúcido, mas que não chega a transformar a sua lucidez em emoção.

Comentários

Mais lidos

Vidas Seguintes (2022)

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

Uma breve História da Inteligência

Preferia Não o Fazer