Les Indésirables, a tragédia da interdependência
O mais recente filme de Ladj Ly, Les Indésirables (2023), quer denunciar a indiferença do Estado francês, mas o que acaba por mostrar é mais complicado do que parece. A história passa-se num prédio em ruína, habitado por famílias pobres e imigrantes. Ly culpa a Câmara e o novo presidente, mas o que se vê no ecrã vai além da má gestão pública: é a decomposição de um espaço que perdeu o sentido de comunidade.
As paredes partidas, os corredores vandalizados, o lixo acumulado, nada disso é apenas culpa do poder. É também o reflexo de um colapso simbólico: pessoas vindas de países diferentes, sem laços nem memória comum, que foram ali encaixadas e deixadas a sobreviver lado a lado. E quando não há sentimento de pertença, o “comum” deixa de ser de todos, passa a ser de ninguém.
Ly mostra a revolta justa dos moradores, mas não compreende o outro lado: o da França pobre e de classe média, que também luta, também paga, e sente que o Estado protege uns e esquece outros. É aqui que nasce a fratura moral do país, e o filme, sem querer, reforça-a.
O episódio dos refugiados sírios expõe a escada de ressentimentos que estrutura a França contemporânea. Primeiro, as classes médias invejaram os pobres franceses a quem o Estado oferecia habitação. Depois, esses mesmos pobres sentiram-se preteridos quando os imigrantes africanos passaram a receber subsídios e apoio social. Agora, são os africanos que olham com desconfiança para os sírios, apresentados como pet projet do Estado e da sociedade de bem. Assim, cada vaga de desfavorecidos vê na seguinte o sinal do seu próprio esquecimento. A empatia que se renova em baixo da escada é sempre ressentida por quem ficou a meio. O filme mostra isso de forma brutal, ainda que sem o entender: ao tentar denunciar a indiferença do Estado, Ladj Ly revela, sem querer, a transformação das antigas vítimas em novos acusadores, o círculo vicioso da exclusão.
Por trás desta escada de ressentimentos move-se uma prensa dupla. De um lado, o capitalismo promete conforto em troca de produtividade infinita e descarta quem não aguenta o ritmo. Do outro, o Estado tenta compensar as falhas do mercado com uma rede social cada vez mais pesada, que custa a sustentar e já não funciona. Entre ambos, o indivíduo sente-se esmagado: trabalha demais ou depende demais, e em ambos os casos sente culpa e impotência. É esta tensão, entre a promessa de progresso e a realidade da exclusão, que alimenta o mal-estar de todos, ricos ou pobres, integrados ou esquecidos.
Mas é o momento em que a Câmara tenta recomprar os apartamentos por vinte mil euros que efetivamente resume toda a tragédia. Qualquer decisão é má, e todas são necessárias:
– Se compra, parece que está a explorar os pobres.
– Se não compra, perpetua a ruína.
– Se reabilita, é acusado de gentrificação.
– Se demole, é acusado de genocídio social.
Não há saída limpa. O prédio, tal como o Estado, chegou a um ponto em que já não se reforma, apenas se recomeça.
Les Indésirables queria ser um filme de denúncia, mas acabou por mostrar, sem o saber, a fragilidade do próprio ideal de ajuda. Há edifícios, e sociedades, que já não se restauram, só podem renascer das ruínas.
Nota: Este texto não é uma crítica às comunidades representadas, nem um eco de discursos extremistas. É apenas o reconhecimento de que, sem lucidez e sem equilíbrio, também a compaixão pode falhar o alvo.
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