Sangue nas Máquinas (2023)

O título “Blood in the Machine: The Origins of the Rebellion Against Big Tech” (2023), do livro de Brian Merchant, indica desde logo ao que vem. O foco é um momento curto da história recente, início do século XIX, quando surgiram em Nottingham as primeiras máquinas de automatização da produção têxtil. Apesar de muito do trabalho já usar maquinaria, com a acoplação de sistemas impulsionados a vapor — essência da revolução industrial — estas máquinas conseguiram muito rapidamente dispensar milhares de trabalhadores altamente treinados. A reação à introdução da tecnologia foi violenta, com o pico a acontecer entre 1811 e 1813, conduzindo à destruição de milhares de máquinas por parte dos trabalhadores. Face à perseguição policial e a continuidade da introdução das máquinas por parte dos donos das fábricas, os trabalhadores acabariam por se organizar de forma semi-espontânea, criando movimentos subterrâneos que seriam depois rotulados como Ludditas, baseado no uso que fizeram de uma personagem ficcional que criaram para apresentar como líder, o General Ludd. Merchant traça a história detalhada desses anos, tentando dar conta daquilo que pensaram e sentiram todas aquelas pessoas que viram o reconhecimento das suas competências ser roubado por máquinas, procurando o paralelo com o momento que vivemos atualmente com tecnologias como a IA.

O que me espantou mais neste livro foi sem dúvida a extensão da rebelião. Já tinha lido vários textos sobre o assunto, confesso que nada muito detalhado, mais trabalhos jornalísticos e pequenas referências em artigos sobre as tecnologias de informação, mas nada disso me tinha oferecido qualquer imagem próxima do que aqui vim encontrar. Não que me surpreenda, 1811 foi há dois séculos, mas pior do que isso, trata daqueles que não tinham voz, nem vieram depois a tê-la, sabendo nós como a história acaba por sempre dedicar mais páginas a relatar o trabalho dos vencedores do que dos vencidos.

Por outro lado, e se Merchant faz um trabalho excecional de levantamento detalhado do que se passou, parece-me que se deixa levar pelo discurso dessa oposição à tecnologia —envolvido por muito do romantismo da época, recorde-se que o próprio Lord Byron se envolveu na questão — à medida que se vai aproximando do final do livro, para atacar cada vez mais fundo todo e qualquer avanço tecnológico, chegando quase a passar a ideia da tecnologia como um mal. Compreendendo o impacto que cada mudança tem na sociedade, é inevitável reconhecer os imensos benefícios que a vida em pleno século XXI usufrui dessas mesmas mudanças provocadas pela tecnologia.  

O líder dos ludditas, Ned Ludd, muitas vezes chamado de General Ludd ou Rei Ludd.

Neste sentido, é preciso filtrar o discurso final de Merchant e extrair o principal que assenta na defesa dos direitos dos trabalhadores. Merchant defende, e bem, que o maior problema foi sempre o modo como os empreendedores nessa altura usaram dessas tecnologias para abusar dos seus trabalhadores. A violência desse abuso foi de tal ordem que os trabalhadores não só se viram obrigados a rebelar-se, mas por falta de ação do estado em sua defesa, a criar o movimento que viria a originar o primeiro sindicato nacional, o National Association for Labour Protection, 1830, precedendo o manifesto de Karl Marx.

Assim, se Merchant escreveu este livro para aprendermos com quem lutou contra a automação há 200 anos, a lição mais importante a extrair é de que vamos precisar de mais e não menos sindicatos. Porque sabemos que nenhuma destas tecnologias será parada, como nunca o foi. E não o foi porque sem o seu constante progresso é muito mais difícil estabilizar uma classe média ampla. Uma grande parte da tecnologia que criamos tem por objetivo criar riqueza e abundância. Para o fazer é mais fácil minimizar os fatores humanos, pois mesmo com formação contínua não conseguimos colocar um humano a trabalhar muito mais rápido ou por mais tempo.

Por isso as duas frentes são fundamentais: o desenvolvimento de novas tecnologias e a proteção das comunidades. É fundamental evitar que quem detém o poder em cada fase de transição se possa aproveitar de quem está em posições desprivilegiadas. Porque se criamos tecnologia que nos ajuda a sermos mais eficientes, o retorno da mesma não pode ser apenas direcionado para quem a detém, este precisa de reverter para toda a comunidade que cria e sustém o ecossistema em que essa tecnologia é introduzida.

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