Preparar a Próxima Vida

A primeira constatação a fazer é relativa às competências de observação e descrição de Atticus Lish que parece dotado de memória fotográfica. Não falo daquelas descrições do século XIX, dos edifícios e das flores, mas de algo bem mais complexo, da vida em movimento. Lish não nos dá apenas a ver onde os seus personagens estão, dá-nos a ver o modo como se movem, como se comportam, como falam, assim como pensam. A verossimilidade das descrições é de tal ordem que ao fim de algumas páginas tive de ir à procura da história de vida do autor para confirmar que ele tinha mesmo vivido na China e que se tinha alistado nos US Marines. É daqui que vem toda a força de “Preparação para a Próxima Vida” (2014) que é o primeiro livro do autor, publicado nos seus 42 anos, mas também do foco nos invisíveis das sociedades desenvolvidas, aqueles que fazem o trabalho que ninguém quer e conseguem ser pagos abaixo do salário mínimo porque não têm papéis.

Atticus Lish entrega-nos uma personagem principal, Zou Lei, construída a partir de uma jovem mulher chinesa que se vê órfã e rechaçada no seu próprio país, a China, por ser filha de mãe Uigur e pai Han, vista como muçulmana. Dotada de uma enorme força interior, vontade de se manter à tona, emigra para os EUA atrás do sonho americano, para perceber que o rechaço continuará aí, agora pelos seus olhos e desconhecimento do inglês e cantonês.

Se tivesse lido este livro em 2014 não faria ideia do que era ser-se uigur, nomeadamente sobre o modo como são tratados na China (ver “Sobrevivente do Gulag Chinês"). Contudo, ao ler agora Lish voltei a sentir uma parte do que já tinha sentido ao ler "Free: A Child and a Country at the End of History", que aquilo que nos parece demoníaco em certos regimes políticos pode bem acontecer às portas das nossas casas, bem no interior daquilo que definimos como sistemas democráticos. Quando não são oferecidas oportunidades dignas às pessoas, quando as redes de suporte dos estados não lhes chegam, as pessoas ficam à mercê da total ausência de escrúpulos do ser-humano que sabe usar do melhor da sua inteligência para extirpar e destruir.

Zou Lei encontra Skinner, um ex-soldado americano, com três estâncias no Iraque, de onde voltou psicologicamente instável, apesar da junta médica que o analisou dizer que os seus problemas não teriam sido provocados pela guerra. A relação destes quase se pode denominar amorosa, passada nas franjas de Nova Iorque, mas na verdade parece mais uma relação de assistência, de um para o outro, ainda que não-consciente, tantas são as fraturas psicológicas que cada um carrega. Quanto mais se vão aproximando, mais distantes e isolados vão ficando.

O trabalho da escrita de Lish é detalhado na análise como já disse, mas se funciona é pela técnica apurada de entremear continuamente as descrições do ambiente com fragmentos de pensamentos dos personagens envolvidos que soam verdadeiros. Lish vai convocando, em breves palavras, mundos inteiros de ideias e eventos — das torturas em Abu Ghraib às Torres Gémeas, passando pelas redes de tráfico de pessoas e pela polícia de emigração, à brutalidade misógena e ao racismo — que contextualizam o contar de história, servindo para nos transportar para dentro do romance. É intenso, ainda que por vezes se possam encontrar excessos nesta abordagem, é um trabalho de grande minúcia e lastro emocional.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Depois do Substack e do Wordpress, de volta ao Blogger

"Caderno Proibido" de Alba Céspedes

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)