Papisa e Generala

Há 20 anos que pretendia ler “A Papisa Joana” muito motivado pela premissa — uma mulher Papa — contudo algo me foi sempre afastando do livro. Chegado ao fim, parece-me que a minha intuição tinha alguma razão de ser. Em vez de ficção histórica, temos romance e aventuras, com todos os problemas que daí advêm, nomeadamente as coincidências de enredo que forçam o suspense e espanto assim como os personagens perfeitamente delineados entre bem e mal, a que se junta a história de amor à lá Romeo e Julieta. Por outro lado, é preciso reconhecer que Donna Woolfolk Cross fez um excelente trabalho de investigação sobre a época em questão, o século IX, não apenas nos modos de viver, ou sobreviver, mas também do funcionamento da Igreja. Tudo junto, acaba por, no meio de alguns enfados, ser uma obra de leitura rápida, e mais importante, capaz de nos transportar para a época.

Capa do livro sobre a Papisa e cartaz da série sobre a Generala.

Relativamente à componente histórica, parti para o livro com a certeza de que se tratava de uma mera lenda, e o romance apresentado reforçou ainda mais essa minha certeza. Contudo, no final, Cross apresenta um racional fundado num conjunto de evidências que parecem suportar o que nos conta, ainda assim, como ainda aqui dei conta a propósito de "Ancient Apocalipse", nem sempre a causalidade narrativa é suficente para demonstrar verdade. Agarrei-me aos casos de mulheres que se disfarçaram de homens ao longo da história, e não foram poucos, mais em particular a um bem recente da história nacional, a Generala, Maria Teresinha Gomes/Tito Aníbal da Paixão Gomes (1933-2007), a quem foi dedicada uma série de televisão, em 2020.

Se a Papisa parece mito, a Generala existiu e está bem documentada. Se em pleno século XX foi possível, nem imagino o que seria possível no século IX. As duas tocam-se, ambas são apresentadas em papéis dotadas de enorme inteligência, com capacidades polímatas. A papisa, além de padre, era especialista em línguas, história, teologia e médica. A Generala, era especialista em finanças, mas especialmente em disfarce. Contudo, separam-se totalmente, no modo como vestiram a pele de homem. A papisa só a usou para poder evoluir, responder à curiosidade e realizar-se pessoalmente. No caso da generala, a julgar pela série, estamos perante um caso claro de transexualidade.


Deixo algumas referências para quem quiser saber um pouco mais:

Pope Joan, World History Encilopedia, Unesco, 2022 

Why the Legend of Medieval Pope Joan Persists, Smithsonian Magazine, 2018 

The Afterlife of Pope Joan, University of Michigan Press, 2006 

Morte duma General, Público, 2007

Portugal's cross-dressing 'general' dies after 20 years as a man, The Guardian, 2007 

“A Generala”, série da SIC


Outros casos na história:

Agnodike, 400 a.C, disfarçou-se de homem e tornou-se médica. 

Santa Eugénia, 258 d.C, disfarçou-se de homem e tornou-se padre. 

Hildegund (died 1188), disfarçou-se de homem e tornou-se monge.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Depois do Substack e do Wordpress, de volta ao Blogger

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

"Caderno Proibido" de Alba Céspedes