Dalva e o Cinema do Pós-Trauma

Fui para Dalva à espera de comoção. Esperava que a história de uma menina abusada pelo pai me esmagasse, me revoltasse, me fizesse chorar. Mas o que encontrei foi algo muito mais raro: um filme que recusa a catarse e, com isso, devolve ao espectador o trabalho de pensar.

Dalva, de Emmanuelle Nicot, não dramatiza o trauma, não exibe as feridas, não nos conduz pela mão. O que vemos é o depois imediato, o espaço vazio entre o fim de uma relação abusiva e a reconstrução de uma vida possível. E é nesse tempo narrativo pouco explorado que reside a sua força.

A protagonista, Dalva, tem 12 anos. Mas comporta-se, move-se e veste-se como uma mulher adulta. Não há exagero, nem histeria. A violência está no descompasso. Os gestos, os olhares, o modo como cruza as pernas — tudo nela parece aprendido. O seu corpo é um palco. Mas o guião já não lhe serve.

A realização é contida, rigorosa. A câmara observa sem invadir. A montagem corta antes da explicação. O guião é admirável pela sua contenção: nada é verbalizado. Vemos Dalva a desprogramar-se em silêncio. E esse silêncio é o território ético do filme. Em vez de nos mostrar o trauma, Nicot mostra-nos os ricochetes da bolha em que Dalva vivia, os ecos da encenação em que cresceu.

O mais surpreendente é que essa desconstrução não vem dos adultos, nem das instituições, nem de longos discursos pedagógicos. Vem dos pares. É na convivência com outras jovens que Dalva começa a perceber que algo está deslocado em si. Uma colega, cuja mãe é prostituta, olha-a com ambiguidade: há empatia, mas também estranheza. E Dalva começa a ver-se através desse olhar.

Não há confronto, há fricção. A desprogramação acontece por contraste. O corpo de Dalva, que até ali funcionava como uma armadura performativa, começa a falhar-lhe. Começa a ser-lhe incómodo. E é nesse desconforto que ela se transforma.

Neste gesto, o filme aproxima-se de uma ética nova: não procura o impacto imediato, mas a persistência reflexiva. Não nos quer como testemunhas emocionadas. Quer-nos como aprendizes atentos.

O espectador aqui não aprende sobre o que aconteceu — isso fica no fora de campo. Aprende sobre como se vive depois. Aprende que a memória do trauma se inscreve no corpo, na linguagem, nos silêncios. E que a cura pode ser um processo sem linguagem — uma reconfiguração que nasce da convivência com o outro.

É por isso que o papel dos pares é central. Como dizia aos meus alunos: aprende-se mais com os colegas do que com os professores. E Dalva mostra isso com uma precisão quase clínica. São os outros jovens — também feridos, também desajustados — que oferecem a Dalva a possibilidade de se ver fora do papel que habitava.

Este gesto liga-se diretamente à teoria de Bandura: aprendemos por observação, sobretudo daqueles que reconhecemos como iguais. Em fase de formação da identidade, os pares funcionam como espelhos reguladores — e é por isso que os encontros entre adolescentes no filme são tão potentes, mesmo sem palavras.

Por fim, talvez a crítica a um filme como Dalva deva também reinventar-se. Em vez de tentar racionalizar demais, deve reconhecer que por baixo da contenção formal, há uma carga emocional imensa. O filme não nos faz chorar, mas deixa-nos com um nó na garganta difícil de desfazer. E talvez seja esse o seu maior mérito: deslocar a emoção para a razão. Fazer-nos pensar onde costumamos apenas sentir.

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