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A mostrar mensagens de agosto, 2025

Da encenação do preto e branco

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Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

A Mulher da Areia (1962)

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Kōbō Abe colocou um homem num buraco de areia e deixou-o ali por trezentas páginas. A premissa é poderosa: um professor de Tóquio enganado por aldeões, preso numa casa que precisa ser escavada todas as noites para não desaparecer sob a areia. É impossível não pensar em Camus, Kafka ou Beckett — todos eles a dizerem-nos que a vida é um círculo repetitivo sem saída. Mas onde Camus encontra clareza filosófica e Beckett arranca humor negro do vazio, Abe entrega-nos apenas areia, sempre a mesma, noite após noite.

A bofetada de Isabela Figueiredo

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Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Entre Sísifo e os ex-amantes

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Ana Moreau canta Les Exs  (2023) como quem se expõe num recado deixado ao acaso, a voz trémula, as palavras presas a uma dor que insiste em não desaparecer. Não há drama grandioso, apenas a persistência íntima de um coração que não aceita morrer. A narrativa que se constrói é feita de fragmentos quotidianos, lençóis trocados, parceiros novos, números marcados por reflexo, e de uma verdade subterrânea: por mais que a vida avance, o amor não se apaga, instala-se num canto escondido e continua a vibrar. O refrão repete como uma ética simples: “faut juste continuer d’aimer, différemment.” Não é o fim, é transformação.

Excesso como Estilo

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Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda  (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Casa na Duna (1943)

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Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva . E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

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O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.

Crossing (2024)

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Realismo total. Duro. Melancólico. Perfurante. Humano. Saí do filme com aquela sensação rara de ter atravessado um mundo que não se exibe, mas se oferece, como se tivesse sido convidado a caminhar, em silêncio, ao lado das personagens.

Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa

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Comecei a leitura de Kokoro  , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir.

Mala letra, livro de contos

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"Mala letra"  (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade.

La madre de Frankenstein (2020)

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Vim para La madre de Frankenstein atraído pela promessa de um romance histórico sólido, centrado na figura de Aurora Rodríguez Carballeira, uma mulher real cuja vida e crime têm peso trágico. Conhecia o seu caso e via nele potencial para um mergulho na psiquiatria do século XX, no contexto do franquismo, e numa reflexão séria sobre a loucura feminina e as estruturas de poder que a oprimiram. Esperava densidade histórica, complexidade psicológica e coragem narrativa.

"Ainda Estou Aqui", por detrás do vidro

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Vi ontem Ainda Estou Aqui e saí do filme com duas certezas: Walter Salles continua a ser um mestre a contar histórias e, ao mesmo tempo, há um vidro quase transparente que nunca me deixou entrar completamente naquela vida. Comecemos pelo que o filme tem de mais forte. A fotografia e a direção de arte são magníficas, cada plano tem a densidade certa, cada cor parece escolhida para permanecer depois na memória. A cinematografia e a montagem são de uma precisão impressionante: nada sobra, nada falta, o ritmo é sereno mas firme. As interpretações estão à altura. Fernanda Torres constrói um arco dramático completo, sem atalhos nem exageros, e todo o elenco secundário mantém a mesma contenção. A música, assinada por Warren Ellis, é tão contida quanto o resto do filme, discreta, mas presente nos momentos exatos, a sustentar a emoção sem jamais a manipular. Mas o que mais me prendeu foi o guião. Salles entende a força de não mostrar. Não há lágrimas fáceis, não há cenas explicativas em ...