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A mostrar mensagens de agosto, 2025

Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa

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Comecei a leitura de Kokoro  , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir. Durante mais de metade da leitura, resisti. O narrador — um jovem convencido da própria lucidez — circula em torno de um Mestre que se recusa a falar, a ensinar, a confessar. A mulher do Mestre parece ser a única figura viva, sensível, lúcida. E tudo o resto... gira, mas não avança. O leitor ocidental, acostumado a personagens com agência clara, pode facilmente sentir-se enganado por esta passividade narrativa. Mas então chega a terceira parte: a carta. E ali, sim, o livro encontra o seu núcleo, o kokoro , esse coração/mente/alma onde a vergonha, a traição, o desejo e a moral se enredam num nó trágico. O Mestre confessa não só o que fez, mas sobretu...

Mala letra, livro de contos

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"Mala letra"  (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade. A sua prosa minimalista e observacional é capaz de encerrar, num parágrafo, todo um dilema ético ou uma relação corroída pelo tempo. Mesa não explica, insinua. E quando dá detalhes, fá-lo para expor fragilidades ou preconceitos com uma frieza quase clínica. O resultado é um conjunto de histórias onde a violência raramente é física, mas onde as feridas emocionais são profundas e duradouras. Há contos que se colam imediatamente à memória: Apenas unos milímetros , sobre os limites da inclusão e a impossibilidade de uma resposta moral confortável; Creamy milk and crunchy chocolate , em que a culpa se torna uma presença quotidiana impossível de redimir; Nosotros, los blancos , que desmonta, sem filtros, o racismo quotidiano mascarado de normalidade. Outro...

La madre de Frankenstein (2020)

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Vim para La madre de Frankenstein atraído pela promessa de um romance histórico sólido, centrado na figura de Aurora Rodríguez Carballeira, uma mulher real cuja vida e crime têm peso trágico. Conhecia o seu caso e via nele potencial para um mergulho na psiquiatria do século XX, no contexto do franquismo, e numa reflexão séria sobre a loucura feminina e as estruturas de poder que a oprimiram. Esperava densidade histórica, complexidade psicológica e coragem narrativa. O que encontrei foi um romance de cordel mascarado de literatura histórica. O Maison de Santé é pouco mais do que cenário para flirts, beijos furtivos e ressentimentos amorosos. A psiquiatria, os fármacos, o impacto das novas práticas médicas, tudo isso é relegado a notas de rodapé emocionais. O que deveria ser um retrato duro e preciso transforma-se num desfile de amores e desamores que poderia ter lugar num condomínio fechado em 2025. Aurora, que dá nome ao livro, é tratada como um bibelô narrativo: aparece, limpa-se o...

"Ainda Estou Aqui", por detrás do vidro

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Vi ontem Ainda Estou Aqui e saí do filme com duas certezas: Walter Salles continua a ser um mestre a contar histórias e, ao mesmo tempo, há um vidro quase transparente que nunca me deixou entrar completamente naquela vida. Comecemos pelo que o filme tem de mais forte. A fotografia e a direção de arte são magníficas, cada plano tem a densidade certa, cada cor parece escolhida para permanecer depois na memória. A cinematografia e a montagem são de uma precisão impressionante: nada sobra, nada falta, o ritmo é sereno mas firme. As interpretações estão à altura. Fernanda Torres constrói um arco dramático completo, sem atalhos nem exageros, e todo o elenco secundário mantém a mesma contenção. A música, assinada por Warren Ellis, é tão contida quanto o resto do filme, discreta, mas presente nos momentos exatos, a sustentar a emoção sem jamais a manipular. Mas o que mais me prendeu foi o guião. Salles entende a força de não mostrar. Não há lágrimas fáceis, não há cenas explicativas em ...