Mala letra, livro de contos

"Mala letra" (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade.

A sua prosa minimalista e observacional é capaz de encerrar, num parágrafo, todo um dilema ético ou uma relação corroída pelo tempo. Mesa não explica, insinua. E quando dá detalhes, fá-lo para expor fragilidades ou preconceitos com uma frieza quase clínica. O resultado é um conjunto de histórias onde a violência raramente é física, mas onde as feridas emocionais são profundas e duradouras.

Há contos que se colam imediatamente à memória: Apenas unos milímetros, sobre os limites da inclusão e a impossibilidade de uma resposta moral confortável; Creamy milk and crunchy chocolate, em que a culpa se torna uma presença quotidiana impossível de redimir; Nosotros, los blancos, que desmonta, sem filtros, o racismo quotidiano mascarado de normalidade. Outros operam de forma mais subterrânea, como Palabras-piedra ou Mármol, explorando como pequenas violências da infância se acumulam em silêncios e olhares desviados.

O mundo de Mala letra é feito de relações tensas, palavras que pesam como pedras, gestos que tanto podem cuidar como explorar (Picabueyes), e figuras ambíguas que atraem e ameaçam ao mesmo tempo (Mustélidos). Mesmo quando o cenário parece banal, um lar de idosos, um quarto alugado, um recreio escolar, há sempre uma corrente subterrânea de mal-estar a correr por baixo.

Sara Mesa não oferece consolo nem respostas. O que dá ao leitor é a permanência das perguntas, e um desconforto que, longe de ser gratuito, obriga a repensar o que está por trás daquilo que chamamos normalidade. Mala letra não se lê para se descansar; lê-se para perceber como, no detalhe mais pequeno, cabe uma história inteira.


Lidos da autora:

La família (2022) (resenha)
Um amor (2020) (resenha)
Cara de Pan (2018) (resenha)
Cicatriz (2015) (resenha)

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