Entre Sísifo e os ex-amantes

Ana Moreau canta Les Exs (2023) como quem se expõe num recado deixado ao acaso, a voz trémula, as palavras presas a uma dor que insiste em não desaparecer. Não há drama grandioso, apenas a persistência íntima de um coração que não aceita morrer. A narrativa que se constrói é feita de fragmentos quotidianos, lençóis trocados, parceiros novos, números marcados por reflexo, e de uma verdade subterrânea: por mais que a vida avance, o amor não se apaga, instala-se num canto escondido e continua a vibrar. O refrão repete como uma ética simples: “faut juste continuer d’aimer, différemment.” Não é o fim, é transformação.

Camus escreveu que a vida é absurda, que o humano repete, dia após dia, o gesto de empurrar a pedra montanha acima, sabendo que ela cairá de novo. A lucidez dessa insignificância cósmica revela-nos a inutilidade de tudo o que fazemos, a irrelevância absoluta dos nossos atos face ao silêncio do universo. Mas a canção de Moreau mostra outra camada: a lucidez sozinha não basta. Saber que nada vale nada não nos dá energia para continuar. A lucidez descreve, mas não move. O que nos move é menos lógico, menos consciente: é o amor, esse excesso irracional que se funde com o desejo e que, por isso, faz o corpo andar, correr, persistir.

O amor não é um raciocínio, não é uma escolha deliberada de viver. É uma pulsação que se infiltra no corpo, que o empurra para diante mesmo quando a razão diz que não há para onde ir. No lugar onde a lucidez paralisa, o amor insiste. É simbiótico com o desejo, e é nesse enlace que se produz a sensação mais radical de estar vivo. Há instantes em que o amor e o desejo convergem e o corpo inteiro vibra, não como ideia, mas como experiência sensorial absoluta. A insignificância cósmica mantém-se, nada se altera na ordem do universo, mas nesse instante há energia, há presença, há vida.

A narrativa de Les Exs encena precisamente isso: a impossibilidade de apagar o passado amoroso não é fraqueza, mas prova de vitalidade. A memória de um ex que continua a doer, as lágrimas que caem ao ouvir uma voz antiga, não são sintomas de doença, mas sinais de que o coração resiste à indiferença cósmica. O amor, mesmo falhado, é o que se interpõe entre nós e o nada.

Camus imaginou Sísifo feliz, encontrando liberdade na consciência do absurdo. Mas talvez devamos imaginá-lo apaixonado, mesmo que apenas pela memória de um amor perdido. Porque só assim a pedra volta a subir: não pela razão que sabe da sua queda inevitável, mas pela energia vital que o amor e o desejo injectam no corpo.

É isso que a canção nos deixa, no fim: não é que o amor dê sentido à vida, não é que redima o vazio. É apenas que o amor, na sua fusão com o desejo, continua a ser a única força capaz de nos mover. Não é resposta nem salvação, mas a prova de que ainda estamos vivos. E, perante a insignificância cósmica, talvez isso seja suficiente.

Comentários

Mais lidos

Vidas Seguintes (2022)

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

Uma breve História da Inteligência

"Careless People" (2025), diz mais sobre a autora do que sobre a Meta