Casa na Duna (1943)

Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva. E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

A Gândara é aqui o elemento mais sólido. Os pinhais, a areia, o vento e o sol não são meros cenários, são forças mudas que condicionam o destino humano. Oliveira descreve este espaço com uma precisão sensorial impressionante: sentimos a resina, o calor, a secura. É nesse registo que o romance atinge a sua plenitude, na capacidade de fixar na página a dureza de uma terra que engole tudo o que lhe resiste.

Mas se a paisagem vibra, a ação rarefaz-se. O declínio da família que deveria sustentar a narrativa não se transforma em saga nem em tragédia. Dissolve-se em fragmentos, em episódios que nunca se expandem. O livro mostra menos o desmoronar de uma casa do que a erosão lenta, quase banal, de um mundo condenado.

“Um suor gordo corre-lhe na espinha, gela-o. A mão escalavrada começa a doer-lhe. Cerca-o a festa, o mundo turvo dos bêbedos, das fêmeas, do cio, caldeado num pobre temor religioso. Treme a cada olhar que lhe deitam. A ternura não existe de graça, é preciso consegui-la à força, magoar, bater. Mas valerá a pena?”

É no interior das personagens que o romance procura intensidade. Hilário, Mariano Paulo, Maria dos Anjos vivem paralisados entre ressentimento e desejo, atravessados por dúvidas constantes. Mas também aqui o estilo oscila: há parágrafos de prosa seca, quase relatorial, seguidos de passagens de naturalismo brutal, e, de súbito, lampejos líricos que parecem deslocados. Essa mistura cria estranheza, e ao mesmo tempo revela a condição do livro: ainda não é a obra madura, mas um ensaio de voz, uma tentativa de encontrar o seu tom.

"Hilário vê um pedaço de céu, as estrelas que brilham sobre a duna e às vezes se perdem num rasto de luz. Ali está uma coisa útil que aprendeu em S. Pedro. Pode explicar a Firmino que as estrelas não caem na terra, se fragmentam e somem pelo espaço."

Lido hoje, Casa na Duna confirma a impressão que já referi noutro texto: o neorrealismo não é realismo, mas impressionismo. Oliveira não constrói uma narrativa total da decadência familiar, oferece antes fragmentos, cenas breves, impressões que sugerem mais do que explicam. O resultado é um romance que parece sempre inacabado, mas que nessa incompletude capta algo essencial: a atmosfera de um espaço e a dúvida existencial que o habita.

Se em Uma Abelha na Chuva encontramos a sofisticação plena, aqui sentimos ainda o peso do ensaio. Mas isso não diminui o interesse: antes mostra o processo de formação de uma voz, presa ao naturalismo e ao neorrealismo, mas já à procura de outra modernidade. Casa na Duna não é uma grande saga, mas um retrato fragmentário de um mundo em desaparecimento, uma família e uma terra que lentamente se afundam na duna.

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