Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa
Comecei a leitura de Kokoro , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir.
Durante mais de metade da leitura, resisti. O narrador — um jovem convencido da própria lucidez — circula em torno de um Mestre que se recusa a falar, a ensinar, a confessar. A mulher do Mestre parece ser a única figura viva, sensível, lúcida. E tudo o resto... gira, mas não avança. O leitor ocidental, acostumado a personagens com agência clara, pode facilmente sentir-se enganado por esta passividade narrativa.
Mas então chega a terceira parte: a carta. E ali, sim, o livro encontra o seu núcleo, o kokoro, esse coração/mente/alma onde a vergonha, a traição, o desejo e a moral se enredam num nó trágico.
O Mestre confessa não só o que fez, mas sobretudo o que não foi capaz de fazer: amar sem medo, falar sem cálculo, existir sem se esconder. A carta é longa, excessiva até — mas nela Sōseki revela o seu grande gesto: mostrar como a moral, quando vivida em silêncio, se torna prisão. E como o desejo, quando nunca é nomeado com verdade, pode matar.
Li a carta final enquanto atravessava um processo pessoal de reavaliação do meu próprio passado. E percebi algo que o livro insinua mas não grita:
A vida moral interior é uma prisão se não for partilhada. E o mundo moderno já não sabe como partilhar.
Kokoro não é sobre um mestre e um discípulo. É sobre todos os que um dia se calaram por vergonha, sobre todos os que confundiram amor com necessidade, sobre todos os que só conseguiram falar quando já era tarde demais.
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