Excesso como Estilo

Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Depois, algo se perdeu. Ao avançar no livro, dei por mim a ler sem parar, mas também sem rumo. Cărtărescu escreve como quem coloca um microscópio sobre o mundo e nunca mais levanta a lente. Tudo se fragmenta em fibras, texturas, partículas de carne, de casas, de carros, de árvores. Admirei a virtuosidade descritiva, mas a experiência começou a tornar-se saturação: demasiado detalhe, demasiada densidade, demasiado excesso.

Cada vez que voltava ao livro, tinha a sensação de entrar numa floresta densa e estranha, feita de árvores e arbustos que não conheço, percorrida por insetos e ruídos que não sei interpretar. Não havia caminho. Lia-se sem dificuldade, sim, mas sem orientação, não sabia onde estava, nem para onde ia.

O mais estranho é que a sua intransponibilidade não nasce da forma. Ofuscante não tem a opacidade sintática de Ulisses nem a fragmentação estrutural de Infinite Jest. A escrita de Cărtărescu é direta, até transparente. Mas é precisamente essa transparência que, ao invés de abrir caminho, fecha-o: a lupa está sempre colada ao real, numa saturação microscópica que nos sufoca em detalhe. Não é um livro difícil de ler, é um livro impossível de atravessar.

Tentei várias vezes regressar. Mas percebi que, para mim, este não é um romance atravessável. É antes um arquivo de visões: um livro para abrir ao acaso, colher imagens raras, fragmentos poderosos, e depois fechar. A sua totalidade é intransponível.

Estética contemporânea?

Há escritores que constroem a sua obra a partir do silêncio, da contenção, daquilo que não se diz. E há outros que fazem do excesso o seu gesto central. Entre estes últimos, três nomes destacam-se no panorama literário contemporâneo: Mircea Cărtărescu, Jon Fosse e Karl Ove Knausgård.

Todos pecam pelo excesso, mas cada um à sua maneira:

Knausgård esgota pelo banal. A torrente de detalhes do quotidiano, descritos até ao limite da paciência, transforma o trivial em vertigem. O gesto repetido de acender um cigarro, de lavar pratos, de arrumar livros ganha peso existencial porque nunca é cortado.

Fosse esgota pela repetição. As frases ecoam umas nas outras como ondas, variando apenas de forma mínima, até que o texto se torna mantra, hipnose, oração. O excesso aqui é musical, feito de cadências que nunca cessam.

Cărtărescu esgota pela proliferação microscópica. A lupa está sempre colada ao real, decomposta em fibras, texturas, vísceras, alucinações. O excesso é visual, quase científico, transformando a cidade e o corpo em florestas intransponíveis de detalhe.

Três estéticas distintas, mas ligadas por um mesmo impulso: desafiar a resistência do leitor. Fazer da literatura não apenas um espaço de prazer, mas de saturação, de confronto com o limite da linguagem e da atenção. Talvez o excesso seja, afinal, a forma mais contemporânea de fidelidade ao real: mostrar que o mundo não se organiza em sínteses elegantes, mas em fluxos intermináveis que nos esmagam.


Decidi, por isso, interromper a leitura. E escrevo isto sem ressentimento, apenas com a consciência de que certos livros não se deixam possuir. Fico com o relâmpago inicial, que sozinho já valeu a experiência. O resto aceito como floresta a que não voltarei.

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