A bofetada de Isabela Figueiredo

Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este "Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro Um Cão no Meio do Caminho, e fiquei muito impressionado. Depois a A Gorda, tornou-me fã. Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

No Caderno de Memórias Coloniais (2009), Isabela Figueiredo confronta-nos com uma verdade insuportável. Não há concessões ao pudor, não há tentativas de disfarçar a vergonha. O capítulo 14 é exemplar: a lembrança de uma bofetada dada a uma colega mulata, Marília, quando ambas eram crianças. O gesto foi premeditado, consciente, e imediatamente sentido como infâmia. O que torna este relato devastador não é apenas a crueldade infantil, mas a clareza com que a autora revela a estrutura de poder que o sustentava. A bofetada é o colonialismo em miniatura: um corpo branco contra um corpo mulato, um ato de violência garantido pela certeza da impunidade.

  Nunca tinha batido em ninguém, mas dei-lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque não concordou comigo, porque eu é que sabia e mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá agora por que lhe dei a maldita bofetada!

  Mas dei-lha, na Escola Especial, no intervalo da manhã, encostada aos fundos da sala da 4ª classe. Uma parede branca. Era a Marília.

  Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a irritar-me, bato-lhe. Podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mão na cara, sem nada dizer, fitando-me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliação. Disse-lhe, já levaste, e depois afastei-me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infâmia que tinha cometido, esse exercício de poder que não compreendia, e com que não concordava. Não por ser uma bofetada, mas porque tinha sido à Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada podia contra mim. Queixasse-se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo à partida?

  Senti-me muito mal. Depois. A experiência tinha-me saído amarga. Bater nos mais fracos não era nada cristão. Jesus não o faria.

  Não esqueci o rosto esguio e o belo cabelo crespo da bela Marília. Era mulata e não podia bater-me. Não me lembro se lhe cheguei a pedir desculpa. Acho que não.

O estilo de Isabela amplifica o choque. A sua escrita é curta, sintética, quase telegráfica. Frases diretas, despojadas, sem ornamento. Essa depuração formal elimina qualquer distância estética que pudesse suavizar a dureza do conteúdo. Não há floreios que distraiam, nem metáforas que edifiquem. Há apenas a palavra nua, que atinge como murro. Essa economia da linguagem intensifica o real: o leitor sente a bofetada como se tivesse acontecido diante dos seus olhos.

Ao escrever assim, Isabela cria uma estética da exposição — uma escrita em que a beleza se encontra não no embelezamento, mas no rigor implacável da verdade. É uma beleza que emerge da coragem de dizer o indizível, de encarar a memória sem véus. A depuração da forma coincide com a depuração da consciência: a frase curta funciona como bisturi que rasga a máscara do esquecimento.

A bofetada dada à Marília é, assim, muito mais do que um episódio pessoal. É um gesto que expõe não apenas a autora, mas todo um país. Ao reduzi-lo a palavras simples, Isabela engrandece o alcance simbólico: a violência colonial mostra-se em estado puro, sem aparato ideológico, condensada no silêncio de uma criança mulata que não reage porque não pode reagir.

É neste cruzamento entre estilo e ferida que reside a grandeza do livro. Ernaux ou Knausgård exploram o íntimo com igual coragem, mas fazem-no num registo que universaliza a experiência, seja pela abstração, seja pela acumulação narrativa. Isabela vai mais longe na crueza: escreve contra si mesma, escreve como expiação, como forma de suportar o peso da memória. A sua literatura não nasce da autopiedade nem da sublimação, mas do ato de se colocar no banco dos réus.

O resultado é um texto que é, ao mesmo tempo, bruto e belo: bruto na exposição da violência, belo na frontalidade com que a autora se assume responsável. E é nesse gesto radical — de tornar literária a própria infâmia — que reside a sua força estética e política.

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