Crossing (2024)
Realismo total. Duro. Melancólico. Perfurante. Humano. Saí do filme com aquela sensação rara de ter atravessado um mundo que não se exibe, mas se oferece, como se tivesse sido convidado a caminhar, em silêncio, ao lado das personagens.
Akin filma com uma naturalidade quase desarmante, tanto na forma visual como nas situações. A comunidade trans é apresentada sem exotismo, sem necessidade de justificação, como parte intrínseca de um tecido social que, no entanto, a vê como outsider. Esse equilíbrio entre dureza e aceitação silenciosa é talvez o que mais me tocou.
A Tia é uma personagem extraordinária: ao não carregar o peso simbólico da mãe, aproxima-se mais de nós, espectadores externos, tornando-se a nossa âncora emocional. É através dela que sentimos o peso do que foi feito e do que ficou por fazer, sobretudo naquela cena final, no barco, olhando para Istambul e, com ela, para todas as pontes que não atravessou.
Instambul aqui não é postal turístico. É cidade viva, densa, feita de ruas anónimas, margens gastas e rostos comuns. É precisamente essa recusa do cartão-postal que a torna ainda mais verdadeira.
O filme é uma travessia em vários planos: geográfica (da Geórgia a Istambul), geracional (Lia e Achi) e interior (o caminho de reconciliação e abertura). E, mesmo sem encontrarmos a sobrinha, fica uma esperança intensa, de que um novo mundo, mais aberto e mais terno, seja possível. Akin, com a sua herança sueco-georgiana e raízes turcas, transforma a sua própria geografia afetiva num ato de solidariedade filmada. E talvez seja por isso que Crossing me ficou cravado: porque não é só sobre quem encontramos, mas sobre quem nos tornamos no caminho.
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