Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.

A forma é, em teoria, estimulante: entrevistas, cartas, notas de investigação, genealogia. Yon procura criar uma narrativa polifónica, cruzando o real com a memória. Mas a execução é desigual. O livro repete-se, insiste até à exaustão no nome de Betsy, martela sempre a mesma posição: a vítima inocente esmagada pela família, pelo patriarcado, pela medicina. A leitura torna-se pesada não pela dificuldade, mas pela redundância.

O discurso central é claro: Betsy, internada e submetida a tratamentos violentos, é transformada em símbolo universal da condição feminina. É aqui que reside a fragilidade. A narrativa apresenta-se como denúncia, mas generaliza em excesso: todos os homens como opressores, todas as mulheres como vítimas. O passado surge achatado, sem nuance, como palco para um manifesto contemporâneo.

Essa fragilidade agrava-se porque a autora inscreve a sua própria biografia dentro da história. A raiva contra o pai, a memória de violências familiares, a fuga de casa aos dezassete anos: tudo isto aparece no texto, não como pano de fundo, mas como chave interpretativa. É nesse ponto que se percebe que não estamos apenas perante a história de Elisabeth, mas perante o ajuste de contas de Adèle Yon com a sua própria família. A tia transformada em mentora, em espelho, em justificação. Esse excesso autobiográfico, longe de iluminar, turva o propósito histórico.

A autora também se posiciona implicitamente como especialista em psiquiatria, psicologia e neurociência, como se a partir da leitura de alguns arquivos pudesse diagnosticar o passado, corrigir médicos, reinterpretar internamentos. A omnipotência discursiva — ora escritora, ora historiadora, ora médica — mina a credibilidade da obra. A força que poderia nascer da mistura de géneros e vozes acaba por se converter em um tom de autoridade que não encontra sustentação real.

E aqui chegamos ao verdadeiro problema do livro: a fusão entre documento e ficção. Não recuso a fusão, pelo contrário, algumas das obras mais interessantes do nosso tempo vivem nessa zona híbrida. O que não aceito é a incoerência: o livro mantém-se sempre no registo documental e militante, pedindo ao leitor que confie na veracidade da pesquisa, até que, no fim, desliza para a pura encenação literária. É só no último capítulo que surgem diálogos íntimos, pensamentos secretos, gestos privados que não podem vir de nenhum arquivo. Isso não é fusão orgânica, é truque.

O problema não está em fazer literatura a partir de documentos, mas em não o assumir ao longo do caminho. O leitor é levado a acreditar, durante centenas de páginas, que tudo é arquivo, para descobrir, tarde demais, que parte substancial é invenção. É essa quebra do pacto narrativo que torna o livro manipulador.

Na verdade, Mon vrai nom est Élisabeth não é apenas um projeto literário: nasce de uma tese em arte, no formato recherche-création, SACRe-ENS (Université PSL). Adèle Yon defendeu-a em 17 de dezembro de 2024, sob orientação de Antoine de Baecque e Antonio Somaini, com o título Mon vrai nom est Élisabeth: enquête sur le double fantôme. Contudo, o volume publicado — em 6 de fevereiro de 2025 — está completamente dissociado dessa linhagem académica. Não há nota, prefácio ou qualquer menção à universidade. Esta omissão parece deliberada, como forma de evitar a associação institucional às generalizações e interpretações viscerais que dominam o texto.

Mon vrai nom est Élisabeth é, assim, um livro que só poderia ter surgido em 2025: original na forma, poderoso para quem aceita o manifesto sem reservas, mas desigual e desonesto na relação que estabelece com o leitor.

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