"Ainda Estou Aqui", por detrás do vidro

Vi ontem Ainda Estou Aqui e saí do filme com duas certezas: Walter Salles continua a ser um mestre a contar histórias e, ao mesmo tempo, há um vidro quase transparente que nunca me deixou entrar completamente naquela vida.

Comecemos pelo que o filme tem de mais forte. A fotografia e a direção de arte são magníficas, cada plano tem a densidade certa, cada cor parece escolhida para permanecer depois na memória. A cinematografia e a montagem são de uma precisão impressionante: nada sobra, nada falta, o ritmo é sereno mas firme. As interpretações estão à altura. Fernanda Torres constrói um arco dramático completo, sem atalhos nem exageros, e todo o elenco secundário mantém a mesma contenção. A música, assinada por Warren Ellis, é tão contida quanto o resto do filme, discreta, mas presente nos momentos exatos, a sustentar a emoção sem jamais a manipular.

Mas o que mais me prendeu foi o guião. Salles entende a força de não mostrar. Não há lágrimas fáceis, não há cenas explicativas em que alguém nos diga “foi assim, por isto e por aquilo”. O filme dá-se como a vida real: vemos o que nos é permitido ver, o resto fica na penumbra, protegido pela privacidade de quem viveu. E é precisamente isso que o torna mais verdadeiro. Mostrar menos obriga-nos a participar mais, a reconstruir mentalmente o que não é dito, e isso é boa escrita.

Depois, há a máquina que está por trás. Salles tem formação na USC, a escola de cinema de Los Angeles onde se molda grande parte da gramática visual americana. Isso vê-se na forma como controla a emoção do espectador sem que este se aperceba, uma linguagem profundamente americana, quase spielberguiana. E vê-se também na escolha da equipa técnica: fotografia, som, montagem, tudo com qualidade de topo, gente habituada a filmar no padrão de Hollywood. Não é um acaso: Salles é o terceiro realizador mais rico do mundo, depois de Spielberg e Lucas, e filma com recursos que só uma elite da indústria consegue ter.

E é aqui que entramos na parte mais delicada. O filme é baseado numa história verídica, mas o guião encena uma vida que, no Brasil dos anos 70, só estava ao alcance de uma minoria ínfima. Estudar em Inglaterra na era dos Beatles, filmar em Super 8 como hobby de família, ter filhos a estudar no estrangeiro, voltar à universidade aos 40 anos com cinco filhos, tudo isto implica um nível de recursos que não tem nada a ver com “classe média” da época. E quando o filme mostra a “queda” da família, vender um terreno milionário na sombra do Cristo Rei, e mudar-se para São Paulo, apresenta-a como um castigo. Mas, mesmo depois dessa perda, continuamos a ver uma vida com escolhas e liberdade.

Este não é um caso de “quem não viu, não viu”. Não se vê porque o filme foi construído para que não se veja. Essa invisibilidade é parte da sua estratégia narrativa: manter o foco no arco emocional e universal da dor e da resistência, deixando de fora o contexto económico que sustentou essas escolhas. O efeito é duplo: para alguns, a história é pura emoção; para outros, há sempre a sensação de que existe um vidro entre nós e aquele mundo.

Ainda assim, Ainda Estou Aqui é um grande filme. Talvez o mais maduro de Salles desde Central do Brasil. É cinema feito com mão segura, que sabe quando avançar e quando recuar, e que respeita a inteligência do espectador. Mas é também um retrato protegido, um drama vivido num mundo onde a dor é real, mas a sobrevivência nunca esteve verdadeiramente em risco. E é esse vidro, fino mas inquebrável, que nos mantém a meio passo da história.

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