Do Lado Dela (1949) de Alba de Céspedes
Entrei em "Dalla Parte di Lei" (1949) com muita sede. Gosto muito de Alba de Céspedes e considero O Caderno Proibido (1952) um dos meus livros preferidos de sempre. Por isso quis dar a este romance a mesma atenção. E dei. Mas acabei frustrado — não por falta de talento da autora, mas por um artifício narrativo que me parece, ao mesmo tempo, inteligente e problemático.
Primeiro, uma correção importante: eu cheguei a pensar que este seria um romance de estreia, ainda imaturo. Afinal não é. Foi publicado apenas três anos antes de O Caderno Proibido. Portanto, a complexidade já estava lá. O que muda aqui não é falta de capacidade. É uma escolha.
O livro chama-se “Do Lado Dela”, em italiano; em português, ficou "Confissão” e, em inglês, "O Lado Dela da História". Nenhum destes títulos é inocente. Eles preparam o leitor para aceitar, desde o início, que isto não é “a verdade”, e sim “a versão”. E o romance usa essa capa para fazer um ataque visceral ao género masculino. Não é um ataque subtil; é repetido, em acumulação, construído por episódios pequenos, desde a infância, como se a narradora estivesse a montar um dossier moral ao longo de centenas de páginas.
O exemplo mais evidente é o pai. A figura do pai é tão estúpida, tão grosseira, tão simplificada, que me custa acreditar que pertença à família burguesa que o livro pretende retratar. Não parece uma pessoa. Parece um boneco escrito para cumprir uma função: mostrar que o masculino é ridículo, pesado, bruto. O marido, mais tarde, entra num registo diferente, menos caricato, mas o resultado é semelhante. Mesmo quando ele fala, mesmo quando explica como é, o trabalho que tem, a forma como sempre viveu, o texto não tenta realmente compreendê-lo. Limita-se a registá-lo como insuficiente.
E aqui começa o cansaço. O livro descreve muito. Demasiado. Descreve a vida interior, descreve frustrações, descreve rotinas, descreve expectativas, descreve a sensação de falta. E fá-lo numa repetição que dá a impressão de uma vida sem fim, sempre no mesmo lugar. Há páginas e páginas em que sentimos que o romance não está a avançar para lado nenhum, porque a narradora também não avança. Tudo fica num “querer querer” contínuo, como se a promessa de salvação estivesse sempre na próxima etapa, mas a próxima etapa nunca chegasse.
Há um momento em que o livro quase se salva para mim: a conversa do copo meio cheio e meio vazio. Aí, de repente, a história abre. Porque já não se trata de homens contra mulheres. Trata-se de duas formas diferentes de estar no mundo: a forma de quem vive na falta e a forma de quem vive na aceitação. E nesse momento eu vi-me nos dois lados. Vi-a a ela e vi-o a ele. Foi aí que senti que a Alba estava a tocar numa verdade mais séria: os humanos não são só “homem” ou “mulher”. Há tendências culturais, claro. Mas há individualidade, dúvida, ambivalência. E ninguém pensa “apenas como homem” ou “apenas como mulher” o tempo todo.
Infelizmente, o livro não sustenta esse nível de complexidade durante o resto do percurso. Volta à construção unilateral. Volta ao dossier. Volta ao dedo apontado.
E depois há uma viragem final. Não vou contar qual é. Mas posso dizer isto: no fim, o romance revela um dispositivo que reconfigura retroativamente tudo o que foi lido antes. E esse dispositivo explica por que razão o livro soa tantas vezes como acusação: porque a narração não é apenas expressão íntima; é também uma forma de se proteger, de se justificar, de controlar a leitura.
E aqui está o meu problema principal: quando a crítica social nasce da voz de alguém que perdeu o controlo, que papel fica para o leitor? Aceitamos tudo porque assumimos que a loucura foi causada pelos homens? Ou passamos a desconfiar de tudo porque a narradora já não é um ponto firme? O romance parece querer as duas coisas ao mesmo tempo: quer que acreditemos na acusação, e quer que tenhamos sempre uma saída fácil caso alguém aponte exageros — “é apenas o lado dela”.
Para mim, isso enfraquece o livro. Não porque a crítica ao casamento seja ilegítima, mas porque a forma escolhida torna essa crítica demasiado segura: acusa-se muito, compreende-se pouco, e no fim há sempre uma escapatória.
Pode-se sempre dizer que tudo isto é metáfora — da mulher, do casamento, da sociedade. O problema é que o livro nunca se assume como metáfora. Escreve como realismo e pede para ser lido como símbolo apenas quando isso lhe convém.
O que torna isto ainda mais claro é a comparação inevitável com O Caderno Proibido. Nesse livro, Alba de Céspedes escreve com uma honestidade muito mais dura: não há escudos, não há artifícios para proteger a narradora, não há caricaturas tão fáceis. Há contradição real. Há pensamento real. Há um confronto mais sério com a complexidade humana. É por isso que esse romance permanece. E é por isso que este, apesar de ter talento e momentos fortes, me ficou como um livro que aponta demasiado e pensa de menos.
Nota sobre as versões lidas
Comecei por ler o livro na versão portuguesa de 1957, da Minerva, mas a letra é demasiado pequena para os meus olhos atuais, mesmo com lentes multifocais, e as páginas amareladas, com rasgos incertos do corte manual, tornam a leitura uma experiência difícil e tortuosa. Ainda assim, serviu para me pôr dentro do tempo do livro. O português daquele tempo atira-nos para o mesmo tempo em que a autora escreve. Por isso ajudou. Mas depois acabei por ler, ou melhor ouvir, o livro em audiolivro numa bela tradução por Jill Foulston e uma narração deliciosa por Carlotta Brentan.


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