Os Despojos do Dia (1989)

"The Remains of the Day" (1989), de Kazuo Ishiguro, é um livro que comecei a ler com muita abertura. Queria entrar na cabeça do personagem e compreender o mundo a partir do seu lugar. Não tinha qualquer intuição de falhas. Pelo contrário: durante o primeiro terço, não tive qualquer dúvida da enorme qualidade. Stevens é meticuloso, reflexivo, vive intensamente dentro da cabeça, algo que reconheço bem. Mas à medida que a leitura avançava, comecei a sentir um desconforto difícil de ignorar. O livro não me estava a pedir apenas uma empatia exigente ou incómoda; estava a pedir algo mais problemático: que eu aceitasse como humano um sujeito cuja relação com o sofrimento começava a parecer estranhamente inexistente. Só mais tarde percebi que o problema não era de contenção emocional. Stevens não é um homem reprimido. É um homem imune ao sofrimento. E é aí que tudo começa a falhar.

O humano que não paga preço

Ao longo do romance, Stevens atravessa acontecimentos que, em qualquer ser humano possível, deixariam marcas profundas: a morte do pai, o apelo amoroso de Miss Kenton, a consciência tardia de uma vida não vivida, a cumplicidade com decisões moralmente repugnantes. No entanto, nada disso é cobrado. Não há culpa, não há colapso. Há apenas racionalização.

Quando parece surgir uma réstia de autoanálise no final, ela é imediatamente reconvertida em eficiência: Stevens decide aprender o “gracejo” para melhor servir o patrão americano. Não há transformação ética, apenas requalificação funcional. A vida inteira é tratada como um relatório de desempenho. Isto não é contenção emocional. É ausência de dor. E um humano sem dor não é um humano contido, é uma fantasia.

Se aceitarmos, com Damásio ou com qualquer psicologia minimamente séria, que não existe racionalidade humana sem afeto, então Stevens não pode existir tal como o livro o apresenta. Se pudéssemos entrar na mente dele, não encontraríamos apenas ordem e explicação; encontraríamos conflito, raiva, tristeza. O romance não mostra nada disso. E não o faz por subtileza: não o mostra por opção do autor.

A cena que quebra o pacto

O momento em que o livro se torna irrecuperável para mim é simples e concreto. Miss Kenton recebe a notícia da morte da tia. Stevens não lhe dá condolências. Não falha por distração; falha por método. E na cena seguinte, em vez de reparar, ataca-a profissionalmente, acusando-a de complacência com novas criadas.

Aqui não estamos perante frieza britânica ou contenção trágica. Estamos perante a subordinação absoluta do humano à função, sem custo, sem hesitação, sem resto. A partir daqui, o livro pede-me que continue a reconhecer dignidade onde já não vejo humanidade.

O “bom escravo lúcido”

Stevens não é um homem simples, limitado pelas circunstâncias. É lúcido, informado, capaz de reflexão política e histórica. E é precisamente isso que torna a personagem eticamente inquietante. Ele usa a inteligência para justificar a abdicação. Pensa para não agir. Compreende para se excluir da responsabilidade.

O romance normaliza esta posição. Stevens é apresentado como digno, amável, respeitável, mesmo quando participa em decisões desumanas, como o despedimento de criadas judias. Não há culpa, não há vergonha. O livro oferece-lhe absolvição retroativa em nome do “cumprimento do dever”.

Isto não é ambiguidade rica. É deslocamento de responsabilidade.

Elitismo e desprezo pela democracia

O problema agrava-se quando o romance entra no território político. A democracia surge como algo ingénuo, impraticável, entregue a um povo incapaz de compreender a complexidade do mundo. As decisões devem caber a elites esclarecidas. Stevens absorve esta lógica sem resistência e transforma-a em virtude.

O salto é absurdo: não perceber de finanças internacionais não equivale a não ter direito a juízo político. Nenhum lorde aceitaria ser excluído da vida pública por não saber fazer uma cirurgia ou escrever uma partitura. No entanto, essa sobranceria é apresentada como realismo, e não como algo a desmontar. O livro não critica esta visão. Acolhe-a.

Destino como cantiga moral

No final, nem ficar salva, nem sair salva. Stevens e Miss Kenton terminam igualmente melancólicos, sentados na mesma paragem de autocarro. A mensagem implícita é clara: nada teria feito diferença. A vida é assim. Tinha de ser assim. Esta aceitação do destino funciona como uma espécie de religiosidade secular: uma ética da resignação elegante, onde o acaso é domesticado e a responsabilidade chega sempre tarde demais. Não é tragédia; é pacificação.

Dostoiévski como teste de realidade

Basta colocar The Remains of the Day ao lado de Crime e Castigo para perceber o problema. Raskólnikov tenta dominar o afeto com a razão e falha. O corpo cobra. A febre vem. A culpa delira. Dostoiévski mostra aquilo que Ishiguro parece negar: o humano não aguenta viver sem pagar preço afetivo.

Em Ishiguro, a anestesia é sustentável. E é isso que torna o romance, para mim, falso.

O padrão confirma-se: Never Let Me Go

Esta leitura torna-se ainda mais clara quando colocamos The Remains of the Day ao lado de Never Let Me Go (2010). Apesar de contextos narrativos radicalmente diferentes, os dois romances partilham o mesmo desenho de fundo: personagens que vivem inteiramente depois da capitulação, sem revolta, sem fratura, sem tentativa séria de escapar ao destino que lhes foi atribuído.

Em Never Let Me Go, a passividade pode, à primeira vista, ser explicada pela premissa da clonagem. Podemos forçar a ideia de que algo foi biologicamente retirado àquelas personagens: o impulso de auto-determinação, a busca. Ainda assim, mesmo aí a alegoria falha, porque os clones sentem desejo, afeto, ciúme, amor, mas nunca transformam essas forças em ação contra o próprio desígnio. São humanos emocionais sem agência.

Em The Remains of the Day, essa saída já não existe. Stevens não é clonado, não é condicionado quimicamente, não vive isolado, não é privado de cultura, linguagem ou memória. E, no entanto, comporta-se do mesmo modo: aceita, adapta-se, justifica. O que em Never Let Me Go podia parecer uma exceção biológica revela-se aqui como um modelo narrativo recorrente.

Ishiguro escreve sempre o mesmo humano: um humano que sente, mas não reage; que compreende, mas não age; que vive, mas não paga custo. O padrão é consistente. E é precisamente essa consistência que confirma o problema. Para que os seus mundos funcionem, é necessário retirar ao humano aquilo que o torna perigoso: a incapacidade de aceitar o destino sem sofrer por isso.

Alegorias só funcionam quando preservam as condições essenciais do que pretendem espelhar. Quando essas condições são adulteradas — quando o humano é despojado da fratura que o define — a alegoria pode ser elegante, mas deixa de ser verdadeira.

Conclusão

Não tenho dificuldade em aceitar que Ishiguro escreve consciências já pós-humanas, convertidas em função. Mas então é preciso dizer isso claramente. O problema é que o romance quer simultaneamente a compaixão pelo indivíduo e a absolvição do sistema, sem assumir o custo ético dessa escolha.

Como forma, o livro é elegante. Como humano, é falso. Como ética, é profundamente inquietante.

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