Hyperion (1989), com uma visão particular da IA
"Hyperion", (1989), de Dan Simmons, é ficção científica que não procura ser coerente nem imediatamente compreensível. Em vez disso, propõe um universo de estranheza total: neologismos, planetas indecifráveis, entidades mecânicas que ultrapassam o simbólico, e uma política interplanetária que parece surgida de um sonho febril. Mas que funciona, e muito bem.
O primeiro impacto é o da densa arquitetura do desconhecido. Simmons cria um universo que nunca está inteiramente ao nosso alcance, e quer que assim seja. Percebemos que há coerência interna, há um plano, há um mundo firme por detrás das palavras. Mas esse mundo não se abre de imediato. Requer rendição, paciência, e a aceitação de que grande parte do fascínio está precisamente naquilo que não compreendemos.
Baseado na estrutura dos "Canterbury Tales", (1892) de Geoffrey Chaucer, o romance divide-se em seis narrativas contadas pelos peregrinos que se dirigem aos Túmulos do Tempo. É aqui que reside o maior trunfo literário de Hyperion: cada história tem uma voz distinta, uma textura própria, um mundo emocional e simbólico que se destaca do resto.
A história do padre é, provavelmente, a mais impactante: um mergulho no horror corporal, na fé confrontada com a impossibilidade, e no surgimento do “milagre” como forma de destruição. É ficção científica com a ousadia teológica.
Depois surgem outras tonalidades: o militar, mais clássico e colado ao imaginário bélico contemporâneo; Brawne Lamia, quase saída de um romance noir tecnológico; o poeta, que devolve ao livro uma estranheza quase mística; o académico; o diplomata. Esta polifonia não é apenas formal, é estrutural. Cada voz expande o universo, criando zonas de sombra e pistas que se cruzam num mosaico imperfeito, mas cada vez mais fascinante.
A figura do Picanço (no original Shrike) é talvez o elemento mais puro de estranheza do romance. Surge como entidade assassina, como deus cruel, como máquina que ultrapassa a máquina. Mas o seu verdadeiro papel é desestabilizar o universo inteiro. É uma figura que encarna aquilo que Donna Haraway chamaria de criatura fronteiriça: nem totalmente viva, nem totalmente morta, nem divina, nem tecnológica. O Picanço é o ponto onde o romance recusa explicação, e é esse gesto que o torna memorável.
Mas talvez o aspeto mais surpreendente de Hyperion seja a representação da Inteligência Artificial quase como raça própria. Mas mais importante, não como inimigas da humanidade, nem redentoras, não procurando dominar nem salvar o cosmos. São outro sistema. Outro domínio de existência.
Vivem num espaço separado, o TecnoNúcleo, e colaboram com humanos desenvolvendo tecnologias avançadas que partilham sem revelar os seus segredos. A relação não é de guerra nem de submissão; é de coabitação pragmática, cheia de zonas de opacidade, mas também de benefícios mútuos.
Quando grande parte da FC contemporânea vê apenas o conflito homem-máquina, Simmons propõe algo mais adulto: duas formas de inteligência que coexistem, negociam e avançam juntas, cada uma com os seus mistérios. Para quem vive hoje entre modelos de linguagem e tecnofobia, esta visão é surpreendentemente lúcida e estranhamente contemporânea.
Hyperion não é um romance perfeito. Tem secções mais fracas (a história de Kassad perde foco e atualidade), nem sempre acerta na gestão de expectativas, e por vezes opta por excesso de informação técnica que mais confunde do que ilumina. Mas é uma obra ambiciosa e sobretudo singular. Um romance que nos mantém presos não tanto pelo mistério em si, mas pelo modo como o autor sustenta esse mistério com uma arquitetura sólida, imaginativa e profundamente humana.
Confesso que Simmons me surpreendeu. Por isso quero ler o segundo volume, pelo que espero que a RdA continue este caminho de desvelamento que resolveu fazer passados 36 anos do lançamento do primeiro livro.

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