Big Kiss, Bye-Bye. (2025). Claire-Louise Bennett

Há livros que não se lêem: instalam-se. Big Kiss, Bye-Bye (2025) pertence a esse território raro onde a literatura não avança por enredo nem por personagens no sentido clássico, mas por presença. O que Bennett constrói aqui não é uma história sobre uma relação; é antes a exposição contínua da consciência em ação, lúcida, por vezes cruel, mas viva, sempre a pensar-se a si própria enquanto vive.

Aquilo que mais rapidamente nos captura é a voz. Uma voz de oralidade insistente e auto‑correctiva, que não relata acontecimentos depois de pensados, mas pensa enquanto fala e fala enquanto pensa. Não existe aqui a distância confortável entre a experiência e a linguagem. O texto nasce no mesmo plano em que a experiência se forma. As frases avançam com hesitações, desvios, e correções como método. Não se trata de fluxo de consciência, nem de fragmentação; trata‑se antes de uma consciência que se observa a si própria em tempo real.

Um dos momentos mais intensos do livro — um longo monólogo interior em torno de um beijo antecipado — não se impõe pelo erotismo, mas pela forma como descreve o corpo como lugar primeiro da experiência: rigidez, falha e suspensão. Tudo surge antes de ser pensado, e é precisamente isso que torna a leitura tão desconfortável quanto hipnótica.

A relação central do livro, entre a narradora e Xavier, funciona menos como centro afectiv e mais como estudo de desgaste e desencanto. Não há dramatização óbvia nem progressão emocional. Há convivência prolongada entre fascínio e ressentimento, ternura com repulsa. Bennett não procura redenção nem resolução; procura ver com clareza.

O quotidiano, longe de poético, é desmontado através de conversas banais, e-mails, refeições, com tudo a ganhar densidade por ser olhado de frente, quase como exceção. Há, por exemplo, uma passagem em que a narradora confessa não compreender a magia do Natal precisamente por se tratar de uma repetição ritualizada. A observação é simples, quase lateral, mas abre um abismo: a festa como automatismo, a celebração como coreografia que perdeu a capacidade de surpreender. É um desses momentos em que o livro parece dizer o que nunca quisemos verbalizar.

Há um ponto em que o livro concentra a sua posição ética e afectiva, através de um longo desvio por The Piano Teacher de Haneke. Não como referência cultural, nem comentário cinéfilo. O filme surge como dispositivo discursivo, um meio para pensar, para dissertar, para levar ao limite o que a autora quer efetivamente dizer com o seu próprio livro.

Ao recontar o filme em detalhe, sem qualquer preocupação com spoilers ou com a protecção do leitor, Bennett faz algo muito preciso: retira ao desejo toda a promessa de redenção. O que a interessa naquele universo não é a perversão, e sim a constatação de que a lucidez absoluta não salva. O desejo, quando despido de fantasia, não conduz a um “mais”; conduz apenas à repetição.

É aqui que o filme se torna chave para compreender o resto do livro. As relações descritas ao longo de Big Kiss, Bye-Bye — com Xavier e com outros homens — não falham por acaso. Falham estruturalmente, porque a própria ideia de relação não cumpre o que promete. O desvio por Haneke permite à narradora dizer isso sem o formular como tese.

Ao obrigar o leitor a permanecer nesse espaço, Bennett recusa qualquer pacto de sedução narrativa. Não oferece catarse, nem aprendizagem, nem saída. Limita-se a mostrar, com uma lucidez por vezes extenuante, que a clareza não protege, que o desejo não salva e que, mesmo assim, continuamos.

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