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Ficcionar Mary Wollstonecraft

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Mary Wollstonecraft escreveu a " A Vindication of the Rights of Woman " em 1792, criando uma das primeiras obras em defesa dos direitos das mulheres, tornando-se pioneira do feminismo e num dos grandes nomes da filosofia britânica. Em 1797, dava à luz Mary Shelley, morrendo 11 dias depois. 20 anos depois, Shelley dava-nos " Frankenstein " (1818) , o primeiro grande livro de ficção-científica, e uma das obras mais emblemáticas da literatura inglesa. Ao contrário do expectável, Wollstonecraft não nasceu num berço de ouro, nem foi estimulada a estudar, antes pelo contrário. “ Love and Fury ” (2021) de Samantha Silva usa os 11 dias após o parto para ficcionar um monólogo de Wollstonecraft dirigido à sua filha, “little bird”, dando conta da sua biografia. Não sendo uma obra notável na revelação de factos, nem na interpretação da vida da filósofa, é uma viagem adorável pelo interior da mente, especulada, de Wollstonecraft, que nos permite descobrir a força e acuidade do c...

Verdade ou Ficção

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O livro "D'après une histoire vraie" (2015) de Delphine Vigan trabalha em dois registos, um de agrado popular, outro dedicado aos críticos e estudiosos da literatura. No primeiro, temos a história colada a "Misery" de Stephen King, em que uma leitora aborda a escritora, introduzindo-se na sua intimidade, para conseguir levar a escritora a escrever o que ela pretende. No segundo, temos a angústia literária da relação entre a ficção e realidade de onde emana a questão da pureza da verdade. Os diálogos entre a leitora e a escritora são muitíssimo bem escritos, capazes de desvelar a psicologia de ambas nos mais pequenos detalhes. O suspense e o mistério entretém-nos, enquanto a filosofia da literatura nos vai sendo servida, em pequenas doses, ao longo de todo o livro. Se se sente uma ligeira repetição na discussão entre a ficção e a realidade/verdade, essa serve essencialmente para nos fazer perceber que o assunto tem não só multiplas camadas mas múltiplas ramificaç...

O tigre erudito

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Prémio Femina (2023);  Prémio littéraire Le Monde (2023);  Prémio Goncourt des Lycéens (2023);  Prémio Les Inrockuptibles (2023); Finalista do Goncourt (2023). Coloco aqui esta lista de prémios, pois sem eles não teria lido "Triste Tigre" (2023). Li com avidez, nos últimos anos, os também franceses, "Le Consentement" (2020) de Vanessa Springora e "La Familia Grande" (2021) de Camille Kouchner . Não queria voltar ao mundo da violação de crianças. Neste caso ainda menos porque ao contrário dos anteriores que usaram a literatura para acusar os predadores, Neige Sinno (1977) tinha já acusado e vencido em tribunal, em 2000, o seu padrasto que, de forma rara, foi sentenciado a 9 anos de cadeia, em 2000.  Sinno foi violada dos 7 aos 14 anos, por vezes mais do que uma vez por dia. Sinno, graças à sua curiosidade pelo mundo, foi uma das melhores alunas durante todo o seu percurso escolar, acabando por conseguir uma bolsa para realizar um Doutoramento em Literatura...

Os Anos de Annie Ernaux

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"Os Anos" (2008) é um registo romanceado de Annie Ernaux que nos leva pela mão da sua memória, de 1940 a 2006, a partir de fotografias que vai desfilando para se questionar sobre a afirmação de Chekhov, “ Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância. ” (excerto de “Três Irmãs” (1901)). Os vetores do Mundo de Ernaux: França, Província, Família (pais), Paris, Casa, Família (maridos e filhos) Liberação Sexual, Pílula e Sida Hipermercados, Consumo e Evolução Tecnológica Economia e Imigração Televisão, Política, Europa, Revoluções, África, Guerras e Terrorismo Música, Publicidade, Cinema e Literatura Tudo isto é visto a partir dos olhos de quem vai envelhecendo, não apenas a descrição do que existia em cada época, mas do modo como ela interpreta, primeiro como jovem, depois adulta, passando a mãe que vê o mundo pelos olhos dos filhos, ...

Goncourt 2023, 2º lugar para Eric Reinhardt

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“Sarah, Susanne et l'écrivain” (2023) de Eric Reinhardt é o livro que terminou em ex aequo no Goncourt 2023, tendo ao fim de 14 rondas sido decidido pelo voto do presidente do júri por “Veiller pour Elle” de Jean-Baptiste Andrea . São dois livros muito distintos. “Veiller pour Elle” é um livro centrado na história que quer contar, enquanto “Sarah, Susanne et l'écrivain” se centra na forma do contar da sua história. Deste modo, não devem ser comparados, já que trabalham objetos distintos, pelo que seja natural esta divisão no júri que decorre da função que privilegiam na literatura.  Sarah confia a história da sua vida a um escritor para que ele a transforme num romance. No romance, dentro do romance que lemos, Sarah chama-se Susanne, e nós seguimos a conversa entre Sarah e o escritor, nomeadamente algumas discussões sobre as opções criativas do escritor para ilustrar os factos apresentados por Sarah. A história de fundo dá conta de uma mãe de família que descobre que o marido ...

Canção do Profeta (2023)

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Este livro de Paul Lynch coloca-nos face à questão determinante que uma mãe (de 4) tem de tomar quando a Irlanda é tomada pela extrema-direita, iniciando um processo de instalação totalitarista e uma guerra contra as forças rebeldes emergentes, abandonar ou não abandonar o seu país, a sua casa, o seu marido acabado de ser preso, em parte incerta, por realização de manifestação sindical. Esta é uma questão fundamental que já me coloquei múltiplas vezes, a propósito dos judeus na Alemanha a partir de 1933 , mas também em muito  outros  cenários dos últimos 100   anos , onde rebentaram guerras ideológicas que conduziram à destruição de milhões de vidas. Quando lemos os relatos desses cenários, passados anos, dezenas de anos, é tão fácil questionar — “porque não fugiram?” Por outro lado, esta nossa questão não deixa de conter uma profunda hipocrisia, pelo modo como os nossos próprios países se foram comportando, na relação para com os refugiados provenientes desses cenário...

Refugiados numa teia kafkiana

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“Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai” (2015) de Jenny Erpenbeck trata dos refugiados na Europa provenientes do continente africano, um tema mediático, mas nem por isso menos terrível por tudo o que encerra. O livro foca-se sobre a burocracia kafkiana criada pela Europa para evitar que os migrantes criem esperanças de facilitismo no processo de entrada. Ainda assim, são apresentados alguns relatos, bastante reais e crus dos países de origem e fuga, assim como da travessia do Mediterrâneo.  A escrita é boa, ainda que tenha sentido algum emaranhar nas descrições que não sei se é fruto da tradução a partir do alemão, apesar disso, a atmosfera eleva-se e envolve-nos.   Erpenbeck destaca-se pelas imagens que cria, nomeadamente o caso de abertura do livro, do lago por detrás da casa do professor universitário reformado em que morreu uma pessoa, e que agora o impede de aí tomar banho por não se conseguir desligar da presença do corpo... A autora não se limita a mostrar o lado negro das vivê...