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Literatura de Viagem

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"Border: A Journey to the Edge of Europe" (2017), não funcionou comigo. A búlgara Kapka Kassabova fala-nos de um lugar onde se cruza a fronteira entre a Bulgária, a Grécia e a Turquia, ao lado de um maçiço montanhoso, designado Strandja, que dá para o Mar Morto, tudo qualificado como a antiga região da Trácia. Quis muito ler, pensando que encontraria aqui mais uma pequena jóia como "Free" de Lea Ypi , contudo, acabou sendo uma enorme desilusão. Percebi só depois de ter desistido porquê. "Border" pertence a um género literário de que não sou particularmente fã, a Literatura de Viagem. Não gostando muito de viajar, o meu problema com este tipo de literatura tem que ver com o facto de se centrar no Espaço-Tempo, o mundo que nos quer apresentar, deixando de fora os Personagens, as suas vidas, que é aquilo que realmente me interessa na literatura. Kapka Kassabova, é uma poeta que tudo faz para dourar exotismo do mundo que nos apresenta, mas que apesar de o faze...

Escrever através dos outros

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Não conhecia Philippe Lançon, cheguei a este seu livro através do acontecimento que lhe deu origem, o ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo, em 7 de janeiro 2015. Lançon, crítico literário, escrevia para o Charlie Hebdo, e para o Libération, onde tinha acabado de publicar a análise de “Submission” de Michel Houellebecq que seria posto à venda nesse mesmo dia. Lançon foi um dos poucos sobreviventes do ataque, apesar de ter sido atingido na cara e maxilar, tendo passado quase um ano no hospital, onde foi submetido a quase vinte operações para recuperar alguma das funcionalidades vitais — beber, comer e falar. Lançon escreve belissimamente. A forma do discurso é perfeita. Contudo, não faltam só competências narrativas, capazes de envolver o leitor, falta também mundo, nomeadamente matéria humana. Todo o livro é escrito como um conjunto de análises literárias. Análises de objetos e não de pessoas, de experiências humanas com sentires, vivências, alegrias, dores e aflições. F...

Comer o Buda (2020)

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Com muita pena, não funcionou comigo. Vinha com imensas expectativas, queria muito lê-lo, pois tinha adorado “Nothing to Envy” (2009) , focado na Coreia do Norte. A abordagem aqui seguida é muito próxima. Demick escolhe um conjunto de personagens da cidade de Ngaba , no Tibete, e segue os fios narrativos das suas vidas. Contudo, as histórias destes personagens acabam por falhar na explanação do real alcance dos efeitos da invasão e totalitarismo imposto pela China no Tibete.     A contextualização da invasão, nos anos 1950, apresenta um bom recorte do que aconteceu, colocando a nu a colonização forçada, realizada pela China em pleno século XX. Surpreende que tenha sido possível, contudo o livro de Demick caracteriza suficientemente o povo tibetano para compreendermos o fundo da questão. Ao fim de décadas a sonhar com pacifismo, aprendi que no nosso planeta não existe lugar para tal. Se um país quer ser independente, tem de lutar por isso. Mesmo o pacifismo de Gandhi não foi...

Um dos Nossos (2023)

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Tinha muitas expectativas quando peguei neste livro de Willa Cather. Adorei os seus “ The Professor's House ” e “ Minha Antónia ”. O registo aproxima-se, contudo estende-se além do sustentável pela narrativa, nomeadamente por ser quebrada em dois grandes momentos, a vida no interior dos EUA, e a partida para a Primeira Grande Guerra, por parte do personagem principal. Se na primeira parte a personagem parece querer evidencar algo particular de si, o modo como se sente desligado de tudo, a fazer recordar Stoner, contudo nada acabando por efetivamente desvelar-se, na segunda parte entramos num outro território, tão distinto a ponto de o próprio personagem servir apenas de veículo à narrativa, refugiando-se numa concha daquilo que foi apresentado na primeira parte. Compreendo o Pulitzer dado em 1923, cinco anos apenas após o fim da terrível guerra. Mas é um livro incapaz de sobreviver ao tempo, a falta do contexto experiencial duro dessa era afasta-nos, torna distante a leitura, o int...

Vidas Seguintes (2022)

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Abdulrazak Gurnah recebeu o  Nobel em 2021 , tendo este "Vidas Seguintes" saído no ano seguinte. Foi o único que li até agora do autor. Mas pelo que li sobre o mesmo, vem na linha dos seus livros anteriores. A escrita de Gurnah é, sem dúvida, um dos pontos altos. A prosa, é caracterizada por um lirismo discreto e preciso, capaz de nos hipnotizar. Impressiona o modo como evitando a ação, nos consegue prender pela mera descrição do que acontece. Nomeadamente, os personagens munidos de uma calma imensa, quase ausentes de emocionalidade, levam-nos pela mão, convencendo-nos a aceitar o trauma como uma inevitabilidade. Isto é tanto mais relevante por se focar nas questões da colonização de África pela Europa, que alegadamente aconteceu sem oposição. Como se Gurnah precisasse dessa encenação para dar conta da profundidade do choque produzido pela colonização. A narrativa é deliberadamente arrastada, fornecendo detalhes históricos e culturais, despidos da esperada emocionalidade trág...

Eu Que Nunca Conheci Homens (1995)

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“I Who Have Never Known Men” (1995) de Jacqueline Harpman parece ser apenas mais uma distopia feminina, na senda de “ A História de uma Serva (1985) ” de Margaret Atwood, contudo, em termos do questionamento que nos faz, está em linha com todas as outras grandes distopias — “Nós” (1921) de Evguén Zamiátin, "Metropolis" (1927) Fritz Lang, "Admirável Mundo Novo" (1932) Aldous Huxley, "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro" (1948) George Orwell, "Fahrenheit 451" (1953) Ray Bradbury. Diria mesmo que de todas estas é a mais ampla e profunda, para o que terá contribuído o facto de Jacqueline Harpman ser psicanalista. O livro foi escrito em 1995 e lançado sem grande impacto. Harpman era belga, com uma carreira limitada ao mercado francófono. Contudo, em 2019 quando a Penguin (através da Vintage) resolveu traduzir o livro para inglês e lançá-lo por meio de uma forte campanha online viria a atingir a viralidade no TikTok. A campanha foi acompanhada por açõ...

Platão nos anos 2000

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"Plato at the Googleplex" (2014) é um livro difícil, com algumas partes hilariantes que ajudam a ultrapassar as mais densas, mas que em essência me fizeram compreender de que é feita a filosofia que há tantos anos leio com entusiasmo. Neste trabalho Goldstein dá conta da atualidade das ideias de Platão, ao trazê-lo para os anos 2000, colocando-o a debater questões que continuam sem resposta desde a Antiga Grécia, evidenciando que apesar da evolução do conhecimento científico, a forma da filosofia continua atual. Nesse sentido, a dialética é a base, é ela mesma a própria filosofia. Importa o processo de argumentação e contra-argumentação, e não propriamente a meta, a resposta final. As grandes discussões assentam em paradoxos ou em equilíbrios de partes contraditórias, pelo que a discussão pode ser infinita, com Goldenstein a afirmar que o progresso é “invisible because it is incorporated into our points of view. . . . We don’t see it, because we see with it.” . Ou seja, a fil...

Generalistas e Especialistas, mais uma vez

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O tema é extremamente importante, mas o livro, apesar de algumas partes boas, não passa de um conjunto de histórias coladas umas atrás das outras. É jornalismo de ciência, serve bem a quem nunca ouviu falar do assunto, mas o assunto está longe de ser novo. Isto para não dizer que os dotes de contar histórias de Epstein ficam alguns pontos abaixo de outros autores que fizeram carreira na escrita deste tipo de livros — Malcolm Gladwell, Geoffrey Colvin ou Daniel Coyle — criando várias zonas de tédio ao longo do livro, especialmente pela repetição da estrutura dos capítulos — história principal, estudos, histórias — ausente de foco e ligação ao todo. Concordo que no domínio dos desportos, música e competição a tradição nos tem trazido quase só livros focados no treino intensivo desde cedo, as 10 mil horas — “ Outliers: The Story of Success ” (2008) de Malcolm Gladwell; “ Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else ” (2008) de Geoffrey Colvin, ou “...

A extinção da razão

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 “The Extinction of Experience: Being Human in a Disembodied World” (2024) era um livro que eu queria muito ler e queria muito gostar. Mas Christine Rosen não escreveu um livro sobre a Experiência Humana, antes listou um rol de queixas contra as mais recentes tecnologias de comunicação — ecrãs, smartphones, rede sociais, realidade virtual, IA, etc —, falhando na sustentação com evidências para a maior parte dessas queixas. Não basta citar um artigo aqui e um estudo ali. As evidências de impactos sociais, mais ainda no caso dos psicológicos, requerem amplos estudos, muito acima dos normais 30, 40 ou 60 individuos dos estudos isolados. Requerem replicação cuidada nas mais diversas culturas e circunstâncias e manutenção das condições e evidências ao longo do tempo. Utilizar estudos isolados para tecer causalidades sobre o estado da civilização como um todo é ingenuidade, para não dizer algo pior. Tanto aqui, como no outro, muito mais badalado, e já traduzido em Portugal, livro, “ A Ge...

Papisa e Generala

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Há 20 anos que pretendia ler “A Papisa Joana” muito motivado pela premissa — uma mulher Papa — contudo algo me foi sempre afastando do livro. Chegado ao fim, parece-me que a minha intuição tinha alguma razão de ser. Em vez de ficção histórica, temos romance e aventuras, com todos os problemas que daí advêm, nomeadamente as coincidências de enredo que forçam o suspense e espanto assim como os personagens perfeitamente delineados entre bem e mal, a que se junta a história de amor à lá Romeo e Julieta. Por outro lado, é preciso reconhecer que Donna Woolfolk Cross fez um excelente trabalho de investigação sobre a época em questão, o século IX, não apenas nos modos de viver, ou sobreviver, mas também do funcionamento da Igreja. Tudo junto, acaba por, no meio de alguns enfados, ser uma obra de leitura rápida, e mais importante, capaz de nos transportar para a época. Capa do livro sobre a Papisa e cartaz da série sobre a Generala. Relativamente à componente histórica, parti para o livro com a...

"The Peasants", de 1909 para 2023

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"The Peasants" (2023) é o segundo filme feito com a mesma técnica — rotoscoping e ilustração a óleo — usada no inesquecível " Loving Vincent " (2017), sobre a vida de Van Gogh, ambos produzidos pela polaca  BreakThru Films . Em "The Peasants" temos a adaptação de um clássico homónimo do Nobel  Władysław Reymont . O filme começa com composições belíssimas suportadas por cores e texturas que gritam pedindo para pararmos a imagem e admirarmos cada momento, saborear, sentir. A história demora a contextualizar, o romance original é de 1909, mas depois de entrar no conflito não nos larga mais. A mistura entre a enorme beleza visual e a intensa tragédia acaba por produzir um impacto em nós no final do todo, do qual não conseguimos sair passadas várias horas. É um hino à condição da mulher, um recordar do mundo de onde viemos.

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

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Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida , El Dorado , Shangri-La , Lemuria , Avalon , Agharta , etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.  8 episódios repletos de desinformação científica A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos.  "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos , pathos e logos —...

Marie Curie, academia e família

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Se algum dia vos passar pela cabeça a ideia de fazer um doutoramento, leiam este livro, "Madame Curie" (1937), escrito pela filha, Éve Curie. A principal característica que alguém, desejoso de abraçar o caminho da ciência, deve possuir, é aqui apresentada no seu expoente máximo: a humildade . Sem humildade, não é possível fazer ciência. Pode-se fazer bons negócios, mas ciência, efetiva, muito dificilmente. Marie Curie aprendeu desde muito tenra idade a importância dessa humildade, mas também a importância da resiliência, do trabalho continuado e persistente para chegar ao conhecimento. A sua história de vida é um hino à Ciência. O sobrenome Curie veio do marido, Pierre Curie, com quem casou em 1895, responsável por propiciar as condições, em França, para que Marie Curie realizasse o seu doutoramento no qual viria a descobrir dois novos elementos, o Polónio e o Rádio. Mas Marie nasceu Maria Salomea Skłodowska na Polónia, em 1867. Se a sua história de 1895 até 1934 impressiona ...

Empathetic violence

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I've attempted to start reading ‘The Kindly Ones’ (2006) several times over the years, but without success. This time, I was more determined, driven by Delphine de Vigan's ideas about fiction and truth. I managed to force myself through the first 100 pages, but then I became bored. I struggled through 200 pages, 300 pages, and finally gave up at 350 pages. The initial premise of following the psychological interior of an SS officer during World War II intrigued me. Littell creates a realistic work, but he spends a long time describing seemingly trivial details. We follow the SS officer almost in real time, everything he does, all the people he talks to, his questions, doubts, and discomforts, but most notably, his enormous indifference to everything. While initially this indifference made it easier for me to visualize the Nazi crimes, making the graphic violence more emotionally neutral, gradually this indifference began to taint everything, rendering everything meaningless. Li...

O simplismo de "Atomic Habits"

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"Atomic Habits" (2018) está no top dos livros de não-ficção e de auto-ajuda há vários anos. Inicialmente não lhe prestei atenção, pois não me parecia trazer nada de novo. Contudo, com o passar dos anos, e com tanta recomendação, acabei por ceder a dedicar-lhe alguma atenção e tentar perceber o que tínhamos ali. A intuição inicial estava certa. Não só não há aqui nada de novo, como o que aqui temos apesar de poder parecer muito interessante para um número alargado de pessoas, pode transformar-se em algo problemático para quem padece de reais patologias do foro psicológico. O problema, é que o comportamento humano é algo tão complexo como aquilo que faz de nós aquilo que somos, e se reduzido a conjunto de indicadores simplistas —que até podem ser aplicados no design de um serviço ou de uma máquina — não devem ser listados, vendidos, desta forma como prontos a resolver os problemas de tudo e todos. A isto juntam-se as certezas do autor, dignas do autoconvencimento do ChatGPT. O ...

Kindred (1979)

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“Kindred” é um livro do seu tempo, mas é um livro que continua a fazer pleno sentido ser lido nas escolas, nomeadamente dos EUA, e  que não faria mal nenhum sê-lo também na Europa e América Latina. Octavia Butler é reconhecida como a primeira autora negra de ficção científica, e este seu livro é uma das evidencias que sustenta esse reconhecimento. Não só o tema é profundo, como o cenário usado para o discutir é emocionalmente inteligente. Temos uma escritora afro-americana nos anos 1970 que se vê de repente regressada ao passado da escravatura no sul dos EUA, tendo de lidar com as normas sociais do início do século XIX sob a cor da sua pele. O resultado apresenta-se como uma fusão, muito conseguida, entre “Time Machine” (1895) de HG Wells e “Beloved” (1987) de Toni Morrison. Entretanto, o livro ganhou uma adaptação recente para televisão . "Kindred" pode ser visto como uma simulação laboratorial, pela ficção, da vida em tempos de escravatura, oferecendo-nos não apenas a persp...

Muito barulho por nada

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“Co-Intelligence: Living and Working with AI” (2024) de Ethan Mollick transformou-se num sucesso de vendas e citações em muito pouco tempo, pelo que apesar do título não me oferecer nada de novo, acabei por ceder a ler para perceber de que era feito o hype. Não passou disso mesmo, ‘muito barulho por nada’. Mollick é um professor de gestão e inovação, grande entusiasta desta última geração de IA, pelo que dedica todo o livro a discutir as experiências que tem feito, a maior parte delas a nível meramente pessoal, ou seja, sem evidências. Por outro lado, quando cita estudos, fá-lo de forma ligeira, extraindo o que lhe interessa e ignorando o que não interessa, não mencionando o escopo e amostras reduzidas dos mesmos. Alguns casos são mesmo gritantes, e um deles abre logo o livro pelo que o transcrevo abaixo [1]. Ou seja, é um livro para amantes desta nova IA, para todos aqueles que acreditam que vão ter um assistente para fazer todo trabalho chato por si, mais, para todos os que pensam qu...

Nexus (2024)

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Este é o 4º livro de Harari que leio, depois de " Sapiens " (2011), " Homo Deus " (2015) e " 21 Lições " (2018), pelo que a minha experiência de leitura refletirá essas mesmas leituras prévias. Assim, se leram os livros anteriores, não esperem encontrar aqui qualquer nova ideia. Harari mantém-se colado aos temas desses livros prévios, com maior ênfase em Homo Deus e 21 Lições . O que Harari aqui tenta fazer novo é criar um modelo de análise política baseado em sistemas de informação, recorrendo a todo o seu conhecimento de História, juntando-o à sua sagacidade de análise e interpretação dos sinais contemporâneos. Contudo, esse modelo que parece ser o ponto de arranque do livro, e do próprio título, depressa passa a segundo plano para se centrar no que mais gosta de fazer, as análises de casos — questões éticas sobre política e  tecnologia — a partir do que vai realizando pequenas abstrações sobre a realidade.  O modelo que Harari começa por tentar desenha...